Zelig (1983)
Realizador: Woody Allen
Com: Woody Allen, Mia Farrow, Patrick Horgan, John Buckwalter, Marvin Chatinover, Stanley Swerdlow, Paul Nevens, Howard Erskine, George Hamlin, Ralph Bell, Richard Whiting
Zelig ficará para a história como um dos mais originais filmes de sempre.
Não apenas pelo brilhantismo do trabalho técnico efectuado pela equipa liderada pelo cinematógrafo Gordon Willis mas também, e na minha perspectiva sobretudo, pelo modo genial como Allen transforma um falso documentário numa narrativa na qual reflecte, com a profundidade que lhe é habitual, questões essenciais da condição humana.
Para mim há uma mensagem fundamental abordada nesta obra, que pode contudo ser analisada sobre diversos pontos de vista.
Por um lado a reflexão filosófica existencialista sobre a falta de autenticidade do homem, numa crítica mordaz à necessidade humana individual de seguir passivamente a multidão, de fazer o que os outros fazem numa vã tentativa de integração.
Por outro uma análise que poderíamos chamar sociológica, que privilegia os comportamentos irracionais das massas, que conduzem invariavelmente a consequências terríveis, como a história do século XX facilmente comprova.
A primeira reflexão leva-nos a concluir que todos temos um pouco de Zelig. Por mais criticável que seja essa postura acrítica, faz parte da condição humana a necessidade de aceitação, de integração numa lógica de grupo. “No man is an island” na famosa meditação do poeta John Donne.
Mas os perigos emergentes dessa necessidade humana são enormes. A manipulação das massas acríticas pode levar à tirania, à completa subversão dos mais elementares princípios éticos.
No filme a postura das massas relativamente a Zelig vai evoluindo.
A primeira reacção é de “voyeurismo”. Zelig (Woody Allen) é retirado pela irmã do hospital e exibido como um fenómeno de circo. Multidões acorrem de todo o mundo para ver o “homem-camaleão”. Zelig é uma aberração que ninguém quer perder. Um “freak” saído do filme de Todd Browning. Um ser à margem da sociedade.
Segue-se o tratamento da psicóloga Eudora Fletcher (Mia Farrow). Zelig perde a faculdade de transformação e apaixona-se pela médica. O casal ganha então estatuto de celebridade. É convidado para as melhores festas, convive com socialites, abrem-se-lhes as portas de Hollywood. A simples integração na comunidade, pela ultrapassagem da diferença, gera a empatia generalizada. Zelig era uma aberração mas pelo seu esforço pessoal e da Dra. Eudora Fletcher passou a ser igual a todos os outros. É o reverso da necessidade humana da integração, a sociedade que premeia o abandono da individualidade e a dissolução no padrão generalizado. É ainda uma crítica à facilidade com que se criam ídolos através da manipulação da opinião pública.
Mas o romance dura pouco. Os escândalos relativos aos comportamentos de Zelig anteriores à aparente cura sucedem-se. Praticou crimes socialmente terríveis, como bigamia, danos em bens domésticos, plágio e extracções dentárias desnecessárias. De celebridade passa rapidamente a inimigo público número um. O povo americano não lhe perdoa os comportamentos bizarros que teve, enquanto era o “homem-camaleão”.
É curioso notar que tais comportamentos nunca foram notados ou denunciados quando Zelig ainda era uma aberração. Na verdade eles eram próprios dessa condição, pelo que ninguém se surpreenderia. É quando Zelig se assume como um cidadão normal, aclamado por todos, que tais comportamentos vêm a público. A exposição pública gera necessariamente um grau de exigência ética superior à do comum cidadão (e mais ainda à de um fenómeno de circo).
Acossado pela justiça, pelos jornais, pela opinião pública, Zelig readquire os poderes de transformação e desaparece.
E aqui surge uma das mais geniais ideias do filme. Zelig reaparece alguns meses depois na Alemanha nazi, entre os mais próximos seguidores de Adolf Hitler.
A solução é de uma lógica assombrosa. Onde melhor se poderia esconder um homem sem vontade própria, capaz de se transformar no que quer que seja apenas para satisfazer a sua ânsia de integração? Quem melhor receberia um indivíduo com estas características?
Claro está que a resposta a estas perguntas implica que todos os milhares de pessoas que assistem entusiasmados aos discursos de Hitler, com Zelig sentado ao seu lado, são também eles homens e mulheres “camaleão”, como o personagem de Allen.
Numa cena hilariante Zelig encontra Eudora Fletcher no meio da multidão, num comício de Hitler, e começa a acenar romanticamente à sua psicóloga e amante. Lentamente, a atenção da multidão camaleónica que seguia o discurso do ditador, é captada pelo casal apaixonado, o que naturalmente provoca a ira do Fuhrer e a perseguição de Zelig como traidor.
E eis que Allen gera um novo paradoxo na história. A fuga do casal da Alemanha é feita num avião que Zelig, por falta de conhecimentos, pilota de cabeça para baixo. O voo constitui um novo record mundial para a aeronáutica e Zelig é recebido em Nova Iorque como herói, com honras idênticas às de Charles Lindbergh.
Acima das celebridades estão os heróis. E estes têm o privilégio de se elevarem além da simples moralidade. Possuem o seu próprio código ético.
Genial.
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