sexta-feira, 5 de março de 2010

A Vida ao Virar da Esquina


The Shop Around the Corner (1940)

Realizador: Ernst Lubitsch
Com: James Stewart, Margaret Sullavan, Frank Morgan, Joseph Schildkraut, Sara Haden, Felix Bressart, William Tracy, Inez Courtney, Sarah Edwards, Edwin Maxwell, Charles Halton

Se há obras que não envelhecem, esse é indubitavelmente o caso dos filmes do realizador alemão Ernst Lubitsch, ainda hoje uma referência incontornável do cinema, 63 anos após a sua morte.
Assistir a este fime, 70 anos depois da sua estreia, é, além de um enorme prazer, constatar o quanto o cinema norte-americano é devedor do génio deste realizador, nascido em Berlim em 1892 mas radicado em Holywood desde 1922, a convite de Mary Pickford.
A comédia romântica que gerou filmes de culto nas últimas décadas é, em larga medida, amplamente devedora da tradição e do toque Lubitsch, a ponto de, por vezes, copiar pura e simplesmente as soluções encontradas em obras como este delicioso “The Shop Around the Corner”. Os encontros e desencontros amorosos de Meg Ryan e Tom Hanks, em "Sleepless in Seattle" ou "You’ve Got Mail", ambos de Nora Ephron, são simplesmente decalcados do amor platónico de Alfred Kralik e Klara Novak, neste clássico de Lubitsch, deliciosamente desenvolvido no cenário de uma Budapeste anterior à Segunda Grande Guerra, ainda amplamente marcada pela elegante tradição do império dos Habsburgos.
Mas o toque Lubitsch está longe de se esgotar nos cenários elegantes ou no romantismo dos seus personagens, é sobretudo a sua extrema habilidade para observar os seres humanos que impressiona. Lubitsch capta, com uma sensibilidade rara, a comédia humana em toda a sua extensão. E mesmo quando o drama bate à porta dos personagens, é sempre com um sorriso nos lábios que o enfrentam, transmitindo ao espectador um incontornável optimismo que revigora e dignifica.
Kralik (James Stewart) é o exemplo de um homem sério, de princípios, mas de uma extrema humanidade. Mesmo quando confrontado com a injustiça ou a traição, ele age com a rectidão que o seu sentido ético lhe impõe, incapaz de gerar ódios ou vinganças. Quando descobre que a sorte lhe foi adversa, na sua paixão platónica por correspondência, recusa-se a desistir. Enfrenta a adversidade com uma confiança inesgotável no ser humano e com a certeza de que as aparências são frequentemente ilusórias. Uma edificante fé no ser humano!
Klara Novak (Margaret Sullavan) é menos crente na bondade humana. A vida foi-lhe madrasta e a jovem caixeira aprendeu a subir por mérito próprio, fruto do seu trabalho e perseverança. Mas também ela revela esperança no seu semelhante, expressa no relacionamento platónico que mantém com Kralik. A vida quotidiana pode ser dura e os tempos difíceis, mas ao virar da esquina há um ser humano perfeito, uma alma gémea a quem se entrega de coração aberto, apenas em resultado das suas inspiradas palavras. Haverá maior prova de fé na humanidade?
A humanidade de Pirovitch (Felix Bressart), numa vertente mais cómica, é também inesgotável. Se a sua condição de assalariado e pai de família lhe inculcou um assinalável espírito de sobrevivência (o modo como foge de cada vez que o patrão pede uma opinião é uma hilariante manifestação desse doentio espírito de sobrevivência), é no entanto o mais solidário com Kralik na hora do infortúnio, o primeiro a dirigir-se ao patrão em defesa do colega injustiçado, o primeiro a ajudá-lo no momento da revelação da sua paixão a Klara.
Também Pepi Katona (William Tracy) é uma hilariante caricatura do ser humano. O pobre moço de recados desejoso de se livrar dos caprichos da exigente Sra. Matuschek, a quem a sorte bate à porta com a tentativa de suicídio de Hugo Matuschek. Ao salvar o patrão comprou a sua liberdade. Ascende à categoria de caixeiro e tem o prazer de descompor a sua ex-patroa, em frente aos colegas, de contratar um jovem paquete para o substituir e, pasme-se, de dar conselhos e críticas aos colegas! Quem não conhece pessoas assim?!
Na sua fraqueza, também Matuschek (Frank Morgan) é de uma enorme humanidade. Vingativo quando o ciúme ataca, sabe ser generoso e solidário quando a ocasião o exige. Comerciante nato, não perde uma oportunidade de negócio (é divertidíssima a cena em que regressa à loja, depois da alta hospitalar, e tenta influenciar as clientes de montra acerca dos bons preços da sua loja, fazendo-se passar por um cliente), mas também comete erros grosseiros como a compra das caixas de charutos com a música Olhos Negros (Ochi Chernie), contra a opinião do mais ponderado Kralik. Os melhores também se enganam.
Até Ferencz Vadas (Joseph Schildkraut) é um vilão quotidiano. Os seus pecados são tão comuns que podem ser encontrados todos os dias à nossa volta. É ambicioso, servil e alimentou uma relação amorosa interessada com a mulher do patrão. Dificilmente seria julgado por isso, a não ser aos olhos eticamente impolutos de Kralik e consumidos pelo ciúme de Matuschek.
Em suma, "The Shop Around The Corner" é um maravilhoso, subtil e delicioso encontro com a comédia humana pela mão única do mestre Lubitsch. É um daqueles filmes que devia ser obrigatório ver. Uma obra edificante, que nos põe de bem com a vida e nos faz pensar melhor dos nossos semelhantes.
Uma comédia de valores genialmente servida com a subtileza, perspicácia e enorme sentido de humor de Ernst Lubitsch.
Um optimismo impressionante, expresso por um alemão no exílio, no preciso momento em que Hitler ocupava a Europa central, arrastando o mundo para a Guerra.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Filosofias


Whatever Works (2009)

Realizador: Woody Allen
Com: Larry David, Evan Rachel Wood, Patricia Clarkson, Ed Begley Jr., Adam Brooks, Lyle Kanouse, Michael McKean, Henry Cavill, Jessica Hecht, Carolyn McCormick, John Gallagher Jr.

Woody Allen regressa ao seu habitat natural novaioquino, depois de um interregno de quatro filmes rodados na Europa, e regressa igualmente à temática que fez dele um dos mais admirados autores do cinema norte-americano, a comédia psicológica, depois de incursões por territórios menos habituais, como o drama e a tragédia de Match Point e sobretudo de Cassandra’s Dream.
Sosseguem pois os fãs do realizador, Woody Allen não perdeu o sentido de humor.
“Whatever Works” traz-nos de volta o incomparável espírito crítico de Allen, recheado do humor inteligente e filosófico a que nos habituou.
No papel principal está Boris Yellnikoff, um brilhante físico aposentado (que chegou a ser nomeado para o Prémio Nobel), às voltas com a sua visão negra, niilista e misantrópica da sociedade. Um papel entregue a Larry David, mas que bem poderia ter sido interpretado por Allen.
O seu mundo é abalado pela entrada em cena de Melody Celestine (Evan Rachel Wood). Uma jovem fugitiva do Mississippi que Boris, relutantemente, acolhe em sua casa.
Dois fugitivos no universo vasto, negro, incomensuravelmente violento e indiferente, nas palavras de Boris (que foram também curiosamente as palavras usadas por Lloyd (Jack Warden) no filme September, realizado por Allen em 1987, para descrever a sua visão científica de um universo terrivelmente assustador, mais aterrador do que a própria morte). Uma astronómica concatenação de circunstâncias permite que os seus caminhos se cruzem, parafraseando uma vez mais Boris, pondo a nu o indeterminismo filosófico de Allen (ou deveria dizer antes o livre-arbítrio militante de Allen).
E essa é, uma vez mais, a mensagem essencial da obra de Allen. A ideia de que o universo è algo totalmente desprovido de sentido, amoral, terrivelmente violento, de que a existência é uma sucessão de tormentos (de imediato vem à lembrança a classificação avançada por Allen em Annie Hall de que a vida se divide entre o horrível e o miserável e de que todos devemos estar gratos se tivermos a sorte de nos encontrarmos entre os miseráveis), mas que, por uma incrivelmente improvável concatenação de circunstâncias, há momentos que tornam a vida digna de ser vivida, há experiências pelas quais vale a pena viver.
Outra ideia repetente na obra de Allen, bem presente neste filme, é a de que o amor se desvanece, que tudo é transitório a começar pelas relações amorosas (love fades…, na expressão usada pela simpática velhinha interrogada por Allen na rua, em Annie Hall). E o seu corolário lógico de que, por mais compatíveis que pareçamos, por mais interesses em comum que tenhamos, por mais exigentes que queiramos ser nas escolhas que fazemos na vida e no amor, no fundo tudo se resume a sorte. Às vezes funciona.
Porquê? Whatever Works… é a resposta de Allen expressa pela personagem Boris.
Desde a ovelha preferida pelo vizinho de Melody no Mississippi até à ménage a trois da emancipada Marietta (Patricia Clarkson), desde o jogo de xadrez no parque até ao prémio Nobel da Física, vale tudo por uma pequena porção de amor, de felicidade, pela mais fugaz experiência de graça. Ou como profetiza Boris a encerrar o filme “Qualquer amor que possa dar ou receber, qualquer felicidade que consiga desviar ou prover, toda a medida temporária de graça, o que quer que funcione…” (“Whatever love you can get and give, whatever happiness you can filch or provide, every temporary measure of grace, whatever works…”).
Vá-se lá saber…

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Segredos da Justiça


El Secreto de Sus Ojos (2009)

Realizador - Juan José Campanella
Com: Ricardo Darín, Soledad Villamil, Pablo Rago, Javier Godino, Guillermo Francella, José Luis Gioia, Carla Quevedo, Bárbara Palladino, Rudy Romano, Mario Alarcón, Alejandro Abelenda

Escrito por Juan José Campanella (baseado no romance “La Pregunta de Sus Ojos”, de Eduardo Sacheri) “El Secreto de Sus Ojos” é um poema negro sobre a condição humana. Uma reflexão profunda sobre a vida e a morte, o amor e a paixão, a justiça e a sua ausência.
Chegado à reforma, um funcionário judicial, Benjamín Esposito (Ricardo Darín), decide escrever um romance sobre o caso que marcou a sua vida, pessoal e profissional. O caso Morales. Um odioso crime ocorrido em 1974, em que uma bela jovem, Liliana Coloto (Carla Quevedo), foi brutalmente violada e assassinada em sua casa.
Contando apenas com a ajuda do colega alcoólico Pablo Sandoval (Guillermo Francella) e da bela juíza estagiária Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), Benjamin luta contra o sistema judiciário e político determinado a solucionar o caso e a levar o responsável à cadeia. Mas a tarefa revela-se difícil e ingrata. Importantes interesses se levantam contra os seus esforços, e o criminoso, Isidoro Gómez (Javier Godino), depois de julgado e condenado, é libertado e colocado ao serviço do poder corrupto, sempre carenciado de assassinos competentes.
A obra lança assim um olhar acusador ao poder argentino do período peronista, ao seu sistema judiciário e político, e simultaneamente convida-nos à reflexão sobre questões essenciais geradas pela violência e pela ausência de uma Justiça eficaz. Como lidar com a morte violenta de quem amamos? Como sobreviver às injustiças de um sistema corrupto e ineficaz? Será possível reparar um tão hediondo crime?
A ausência de respostas a estas perguntas tornaria a vida de qualquer um insuportável. Um castigo pior do que a morte libertadora.
Paralelamente Benjamin lida com outra questão insolúvel, o seu amor inconfessado por Irene. Insolúvel porque a diferente condição social e profissional o impedem de qualquer avanço, seguindo ambos caminhos separados e desapaixonados.
Vinte e cinco anos depois, reformado mas inconformado, Benjamin escreve para libertar os seus fantasmas. Mais do que responsáveis, ele busca respostas que dêem algum sentido à sua vida. E acabará por encontrá-las.
Há coisas que o tempo não consegue apagar. Pessoas que não se conformam com as incapacidades do sistema e a Justiça pode ter muito pouco a ver com Tribunais e processos.
Finalmente reconciliado consigo próprio e com a vida, Benjamin enfrenta os seus medos e os fantasmas do passado.
Com uma renovada confiança no futuro.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Desigualdades


Entre Les Murs (2008)

Realizador: Laurent Cantet
Com: François Bégaudeau, Agame Malembo-Emene, Angélica Sancio, Arthur Fogel, Boubacar Toure, Burak Özyilmaz, Carl Nanor, Cherif Bounaïdja Rachedi, Dalla Doucoure, Damien Gomes

Vencedor em 2008 da Palma de Ouro em Cannes e nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro, “Entre Les Murs” é um projecto quase pessoal de François Bégaudeau, autor do livro homónimo que co-adaptou ao cinema e protagonizou sob a direcção de Laurent Cantet.
A obra propõe uma reflexão fortemente crítica mas surpreendentemente subtil sobre o sistema de ensino francês que, por extensão, poderá ser igualmente aplicada à maioria das sociedades do “mundo rico” e democrático.
Estarão os nossos sistemas de ensino aptos a enfrentar os problemas decorrentes da globalização e dos intensos fenómenos de migração com que as sociedades actuais se debatem?
Como pode um jovem professor de francês, preso a um programa escolar rígido e frequentemente informado de intenções uniformizadoras, enfrentar uma turma de alunos totalmente heterogénea, formada por filhos de emigrantes do Mali, da Tunísia, de Marrocos, da Argélia, da China, das Antilhas Francesas, de Portugal, da Costa do Marfim, e de outras tantas nacionalidades?
Que cidadãos nascerão deste choque cultural? Existirá uma verdadeira igualdade de oportunidades, pressuposto essencial da democracia, quando numa mesma sala convivem jovens culturalmente tão diversos, presos a programas e matérias manifestamente concebidos para sociedades uniculturais?
Será legítima a imposição de um padrão cultural dominante através do sistema de ensino? Existirá ainda (se é que alguma vez existiu) a França dos manuais escolares?
O filme não dá respostas a estas perguntas, excepto o vazio.
O vazio das salas de aula no final do ano lectivo.
O vazio das expectativas dos alunos, uns conformados, outros inconformados com as incapacidades do sistema.
Haverá sempre a selecção entre a via de ensino e a via profissional.
E quem não quiser seguir a via profissional, como pertinentemente pergunta uma aluna ao professor no final do ano lectivo? Haverá igualdade de oportunidades para esses?
O problema não é novo, outras sociedades, como a norte-americana, enfrentam-no há mais tempo e outros cineastas já o levaram ao grande ecrã de forma bastante conseguida, a começar pelo clássico de 1955, superiormente escrito e realizado por Richard Brooks, “Blackboard Jungle”.
Mas as sociedades contemporâneas são substancialmente diferentes da sociedade norte-americana dos anos 50, ainda que alguns problemas possam ser comuns.
O conflito geracional ampliado pelas questões raciais foi a principal preocupação expressa no filme de Brooks, numa crítica subtil ao McCartismo, então no auge de influência, que propunha o conservadorismo dos valores tradicionais da América reaccionária como denominador comum, mas dificilmente aceitável, de uma sociedade essencialmente diversa.
Mas será que a Europa, mergulhada num ambicioso processo de união política e económica alargada e defensora de valores declaradamente tolerantes, diria mesmo estimulantes, da diversidade, consegue fazer melhor?
Qual o denominador comum nestas sociedades, cada vez mais heterogéneas? O futebol?
Como já referi, o filme não fornece respostas. Apresenta-nos a incoerência do presente e propõe-nos uma sala vazia como ponto de partida para a construção do futuro. De um sistema mais justo e eficaz que garanta uma efectiva igualdade de oportunidades, respeitadora da diversidade cultural.
Será uma utopia?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Toque de Midas


Slumdog Millionaire (2008)

Realizador: Danny Boyle e Loveleen Tandan
Com: Dev Patel, Saurabh Shukla, Anil Kapoor, Rajendranath Zutshi, Jeneva Talwar, Freida Pinto, Irrfan Khan, Azharuddin Mohammed Ismail, Ayush Mahesh Khedekar, Jira Banjara

Slumdog Millionaire é um filme revelador.
Revelador de que as coisas em Hollywood já não são o que eram (apesar de britânico o filme é co-produzido e distribuído pela Fox). De que a tradicional grande produção destinada à família média já não chega e de que o cinema, mais do que nunca, busca uma identidade universal espelhada não apenas na conquista de públicos fora de portas, mas também de ideias, de actores e de parceiros na produção.
A co-produção, princípio geralmente associado à pequenez financeira dos projectos europeus, que busca, através da partilha do risco, concorrer com o poderoso mercado norte-americano, assume-se aqui não como uma limitação mas antes como uma vantagem, pela diversidade e universalidade que acarreta.
Neste particular a opção pela Índia é claramente indiciadora da importância deste mercado (é o maior produtor e consumidor mundial de filmes) e do apetite dos grandes estúdios de Hollywood por ele, consequência de décadas de difícil penetração. Se o público indiano não se deixa levar com facilidade pela mega produção típica hollywoodesca há que fabricar um produto à sua medida, recorrendo, para tal, a co-produções com empresas locais, capazes de fornecer condições privilegiadas de trabalho e bem assim de direccionar o mesmo no sentido dos gostos do gigantesco público do subcontinente asiático.
Grande vencedor da Cerimónia dos Óscares de 2009, revela igualmente que tal estratégia, já expressa em filmes anteriores como Crash ou Babel, está perfeitamente sancionada pela Academia, o mesmo é dizer pelos profissionais do cinema, críticos incluídos.
Mas Slumdog Millionaire é também revelador de uma Índia dos bairros difíceis e dos conflitos raciais e religiosos, que poucas vezes tem chegado ao cinema. De certa forma é a Cidade de Deus e a Gomorra de Mumbai que surgem no ecrã, mostrando-nos uma faceta adivinhada, mas raras vezes vista em cinema, da sociedade indiana. Uma faceta negra da “maior democracia do mundo” que a literatura e o jornalismo já tinham revelado ao Ocidente mas à qual o cinema tem virado as costas, preferindo o exotismo da Índia histórica e monumental ou o glamour das estrelas de Bollywood.
Aqui a tradicional visão alienante da televisão, representada pelo concurso mundialmente famoso “Quem Quer Ser Milionário”, é substituída pela perspectiva mais optimista da válvula de escape. Escape para os poucos que têm a sorte de conquistar um lugar ao sol, fruto dos seus chorudos prémios, mas também para os milhões que assistem hipnotizados, através dos ecrãs colectivos, à metamorfose dos seus semelhantes. Da favela para o passeio da fama. De zero a herói pelos efeitos incontornáveis do rei dólar. A televisão como o lendário rei Midas, capaz de transformar em ouro tudo aquilo em que toca.
Poderá criticar-se a visão excessivamente miserabilista transmitida pelo filme, que não resiste a usar um acentuado dramatismo como meio de melhor cativar, sensibilizar e até horrorizar o espectador. Esta é uma visão parcial da Índia, mas não é por isso menos verdadeira. E porque razão não deveria a ficção ser parcial? A arte não visa o rigor informativo (o que quer que isso seja) mas antes a percepção individual, única, pessoal e, por isso mesmo, essencialmente parcial da realidade.
É ainda uma obra reveladora de um cinema visto com algum desdém no ocidente. A confirmação de que a Índia, com a sua poderosa indústria cinematográfica, é capaz de produzir cinema de qualidade e de carácter universal e não apenas musicais românticos destinados a consumo interno e da respectiva diáspora. De que na Índia existem grandes profissionais do cinema, actores incluídos, capazes de rivalizar com o que de melhor se produz no ocidente, a começar pelos Estados Unidos da América.
É por isso uma obra de inegável mérito e valia. Um olhar diferente e muito humano sobre um mundo quase desconhecido. Uma prova de vitalidade do cinema indiano e, também, da aposta globalizante da grande produtora norte-americana.
E já agora, para nós portugueses, é também revelador de uma belíssima actriz de ascendência lusitana, Freida Pinto, demonstrativa também do universalismo da semente nacional.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sentido de Dever


High Noon (1952)

Realizador: Fred Zinemann
Com: Gary Cooper, Thomas Mitchell, Lloyd Bridges, Katy Jurado, Grace Kelly, Otto Kruger, Lon Chaney Jr., Harry Morgan, Ian MacDonald, Eve McVeagh, Morgan Farley, Harry Shannon, Lee Van Cleef


Rio Bravo (1959)

Realizador: Howard Hawks
Com: John Wayne, Dean Martin, Ricky Nelson, Angie Dickinson, Walter Brennan, Ward Bond, John Russell, Pedro Gonzalez Gonzalez, Estelita Rodriguez, Claude Akins, Malcolm Atterbury

Por vezes os filmes são como as cerejas, uns puxam os outros.
Foi assim com esta incursão pelo western proporcionada pelo remake de 3:10 to Yuma, de James Mangold. Serviu de pretexto não apenas para o visionamento do original de 1957, da autoria de Delmer Daves, mas também de duas obras fundamentais do western dos anos 50, intimamente ligadas a este projecto: High Noon, de Fred Zinemann, o seu principal inspirador, e Rio Bravo, de Howards Hawks, uma das suas principais consequências.
Estamos perante dois dos melhores exemplos do western adulto da década de 50. Filmes em que o argumento procura construir um retrato psicológico dos principais personagens, em que a violência é, de algum modo, sustentada pelas tensões psicológicas construídas à volta dos protagonistas.
É assim com a solidão forçada e honrada dos agentes da lei John T. Chance (John Wayne) e Will Kane (Gary Cooper), com o alcoolismo de Dude (Dean Martin), a invalidez de Stumpy (Walter Brennan), o despeito de Harvey Pell (Lloyd Bridges) ou a solidariedade de Colorado Ryan (Ricky Nelson). É ainda assim com o orgulho ferido dos criminosos Joe Burdette (Claude Akins) e Frank Miller (Ian MacDonald).
Por outro lado é interessante analisar a importância dos personagens femininos em ambos os filmes. Feathers (Angie Dickinson) e Amy Kane (Grace Kelly) fogem de passados de crime ou violência e procuram, através do relacionamento com os heróis, a estabilidade familiar e a segurança que lhes foi sempre recusada. Representam para Chance e Kane a luz ao fundo do túnel da sua vida de violência. Uma luz que teima em não chegar.
Interessante é também o personagem de Helen Ramirez (Katy Jurado), o fantasma do passado dos dois contendores, a semente do mal prestes a ser libertado, que prefere a fuga ao regresso ao passado de dor e violência. Consciente de que a cidade virará as costas aos princípios na hora da verdade, compreende que nada restará para ela se ficar. Nem o respeito de e para com os seus concidadãos, nem o amor (e porventura até a vida) de Kane, que escolheu o casamento com Amy.
Estamos perante duas obras que obrigam os seus principais personagens ao confronto com os mais profundos medos, valores e princípios.
Em qualquer dos casos era possível a fuga. A cedência à lei do mais forte para garantir o futuro. Todos (ou quase todos, Chance conta com a ajuda de um bêbado e um aleijado, na expressão usada por Burdette) optam pela solução mais fácil, por virar as costas ao problema, com os mais variados argumentos. Todos menos Kane e Chance.
Contra tudo e contra todos, mesmo contra as melhores probabilidades, lutam pelos valores que defendem, saem-se bem da tarefa e colhem os louros da vitória, personificados no amor de Feathers e Amy. Antes uma morte honrada que uma vida indigna.
Também Kane e Stumpy ganham o respeito e a dignidade pela persistência. O primeiro vence finalmente o alcoolismo e o segundo prova perante todos a sua valia, apesar das limitações físicas.
Em High Noon há um alcoólico, Jimmy (William Newell), que oferece a sua ajuda a Kane, mas este recusa. Howard Hawks recupera esse personagem em Rio Bravo e dá-lhe uma nova dimensão e dignidade através de Dude “El Borrachón”.
Contudo apenas Chance e Kane lutam pelos princípios. Nada têm a provar a ninguém, nem sequer a si mesmo. Lutam por consciência de ser esse o seu dever, pela defesa da justiça e dos princípios mais básicos da vida em sociedade. Colorado Ryan acompanha mais tarde Chance nesse desígnio, mostrando talvez que a sua sucessão está assegurada. Que haverá sempre alguém com a dignidade de lutar pelo que é justo sem esperar nada em troca.
Um pequeno toque optimista que Zinemann não introduziu no seu filme. Em High Noon a luta é solitária e pessoal. Perante a indiferença de todos, que só pretendiam o conforto da fuga de Kane, este encara de frente o seu destino contando apenas com a ajuda inesperada da mulher. Logo após a morte de Miller, o casal parte rumo ao futuro, deixando a cidade entregue à sua má consciência.
São valores básicos os que se confrontam no western, mas, por isso mesmo, são valores universais e intemporais.
Numa sociedade marcada pela corrupção e pela constante escolha da via mais fácil, mais confortável, como a que vivemos, fazia bem a muita gente ver filmes como estes.
Filmes em que a honra e a dignidade comandam a vida dos homens, mesmo perante as mais sérias adversidades.

High Noon Trailer


Rio Bravo Trailer

domingo, 31 de janeiro de 2010

Crónica de Uma Morte Anunciada



3:10 to Yuma (2007)

Realizador: James Mangold
Com: Russell Crowe, Christian Bale, Logan Lerman, Dallas Roberts, Ben Foster, Peter Fonda, Vinessa Shaw, Alan Tudyk, Luce Rains, Gretchen Mol, Lennie Loftin, Rio Alexander


3:10 to Yuma (1957)

Realizador: Delmer Daves
Com: Glenn Ford, Van Heflin, Felicia Farr, Leora Dana, Henry Jones, Richard Jaeckel, Robert Emhardt, Sheridan Comerate, George Mitchell, Robert Ellenstein, Ford Rainey

Confesso que sou um apreciador do western. Um género que caiu em desuso há muito e que, de tempos a tempos, reaparece solitariamente nos ecrãs, fruto da teimosia de alguns saudosistas para satisfação de outros, como eu.
Geralmente em boas produções que lhe fazem justiça.
Cinquenta anos depois James Mangold refez um clássico de Delmer Daves, escrito por Halsted Welles a partir de um conto da autoria de Elmore Leonard. O argumento do novo filme contou ainda com algumas revisões da autoria de Michael Brandt e de Derek Haas.
E o argumento é, sem dúvida, o prato forte desta obra, que inspiraria (juntamente com High Noon, realizado por Fred Zinnemann em 1952) Howard Hawks a realizar o famoso Rio Bravo em 1959.
Os anos 50 trouxeram uma nova dimensão ao western, uma consciência social. 3:10 to Yuma é claramente um dos bons exemplos de um western maduro a que o argumento de Welles empresta ainda uma tensão psicológica que o aproxima do thriller.
Por isso, ao vermos o clássico de 1957, parece-me forçoso concluir que este remake era de todo desnecessário. A obra original mantém todo o seu interesse, na excelente cinematografia a preto e branco de Charles Lawton Jr., na realização competente de Daves e nos excelentes desempenhos dos dois protagonistas, Glenn Ford e Van Heflin, além, claro está, do belíssimo argumento.
Felizmente, apesar de desnecessário, o filme de Mangold não resulta num mero pretexto para levar aos cinemas as fãs de Russell Crowe. Embora algumas das alterações ao argumento, sobretudo o final, possam ser polémicas, penso que quem assistir ao filme não dará o seu tempo por perdido, e assistirá, ainda assim, a um bom western, competentemente dirigido e bem interpretado pela dupla Russell Crowe e Christian Bale, contando com bons valores de produção. Ainda que nada acrescente de relevante à obra original.
Ben Wade (Glenn Ford, Russell Crowe) é um notório assaltante de diligências que aterroriza, com o seu bando, as cidades do árido Arizona. Após um assalto deixa-se reter por uma velha paixão na cidade de Bisbee o que permitirá a sua captura. Torna-se contudo necessário levá-lo até à prisão estadual de Yuma, mas todos temem a reacção do bando, que tudo fará para libertar o seu chefe.
Dan Evans (Van Heflin, Christian Bale) é um modesto fazendeiro de Bisbee a braços com dificuldades económicas decorrentes da seca, que não consegue resolver. Quando Mr. Butterfield (Robert Emhardt, Dallas Roberts), dono da companhia de diligências (no remake de Mangold, Butterfield é dono de uma companhia ferroviária que ameaça as terras de Evans e a diligência assaltada, o seu carro de transporte de valores), oferece uma choruda recompensa para quem o queira acompanhar na escolta do prisioneiro até Contention, local onde será enviado no comboio das 3:10h para Yuma, Evans vê a sua derradeira oportunidade para salvar a quinta e a família da miséria, e aceita.
Inicia-se então um intenso drama psicológico que opõe Wade, um ladrão que vai adquirindo respeito pela dignidade e ética do fazendeiro, e Evans, o homem sério que vê a sua coragem e honestidade serem colocadas permanentemente à prova pelos constantes aliciamentos de Wade e pelo terror incutido pelo seu bando.
A presença da família de Evans ajuda a construir o perfil psicológico dos dois personagens. Por um lado o foragido galante e conhecedor do mundo, que consegue atrair com o seu charme a mulher de Evans (Leora, Dana, Gretchen Mol) e com a sua coragem os filhos do casal (Barry Curtis e Jerry Hartleben, Logan Lerman e Benjamin Petry) e que, de certo modo, inveja a vida familiar do fazendeiro, vedada pela opção que tomou pelo crime. Por outro o pacato agricultor que quer mostrar à mulher e aos filhos, e sobretudo a si mesmo, que também ele é um homem de coragem e de valor, apesar da vida miserável que leva e que proporciona à sua família. Um misto de inveja e de despeito, além da necessidade do dinheiro, levam-no a aceitar a ingrata tarefa.
Esta permanente oposição de valores conduz contudo a que ambos dediquem ao outro um respeito que se vai intensificando até final, à medida que, pelo contacto permanente, melhor se conhecem. E no fundo a história revolve à volta disso mesmo, dos valores que ambos acalentam, apesar de todas as vicissitudes (o crime, a pobreza, o facto de se encontrarem em lados opostos da lei). Aí reside a essência da condição humana e por isso ambos vêem crescer um sentido de respeito, de dignidade, um pelo outro, apesar de se encontrarem no lado oposto das armas.
O esperado duelo final, em que o bando de Wade finalmente defronta o guardião do seu chefe, aparece assim como um confronto contra-natura, simultaneamente aguardado e indesejado pelos dois protagonistas. Wade compreende que a derrota de Evans será de algum modo também a derrota de um homem honrado e dos princípios em que acredita. Evans por seu turno precisa de entregar aquele homem, por quem desenvolveu respeito e amizade, não só para salvar a sua quinta mantendo íntegra a sua honra, mas também para reconquistar o respeito por si próprio, atenta a vida dura que tem imposto à sua família.
Nesse sentido parece-me irrelevante a alteração perpetrada no final do filme, no remake de 2007. O essencial da obra está precisamente na construção desse respeito mútuo que leva à entre ajuda dos protagonistas, no duelo final rumo ao comboio para Yuma. Em ambos Evans consegue os seus objectivos com a colaboração de Wade.
Em ambos Evans ganha o respeito de todos e recupera o seu amor-próprio.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Nailed His Ass


Intolerable Cruelty (2003)

Realizador: Joel Coen
Com: George Clooney, Catherine Zeta-Jones, Geoffrey Rush, Cedric the Entertainer, Edward Herrmann, Paul Adelstein, Richard Jenkins, Billy Bob Thornton, Julia Duffy, Jonathan Hadary

Intolerable Cruelty é uma comédia aparentemente ligeira que esconde uma visão profundamente cínica do casamento e do sistema judicial norte-americano.
À visão romântica do casamento, tantas vezes veiculada por Hollywood nas comédias românticas que serviram de inspiração à presente película, os irmãos Coen, com a sua habitual ironia e humor negro, contrapõem-nos uma visão puramente mercantilista, que não deixa de constituir uma perspectiva bem real do casamento nos tempos que correm.
E será que alguma vez assim não foi?
O casamento por amor é uma invenção do romantismo já que, até então, os aspectos patrimoniais sempre constituíram o principal móbil do matrimónio nas diferentes sociedades. O casamento é historicamente um contrato, que visa, muito mais do que legitimar relações amorosas ou a descendência dele resultante, titular negócios de natureza patrimonial.
Ao retirarem aos progenitores a iniciativa contratual no que respeita ao casamento, os legisladores românticos não alteraram a natureza essencialmente patrimonial do instituto. Limitaram-se a transferir a capacidade contratual dos progenitores para os nubentes.
Quem, como eu, vive o quotidiano dos Tribunais e das disputas litigiosas, designadamente as emergentes da dissolução do vínculo conjugal, sabe que a postura cínica de Miles (George Clooney) e Marylin (Catherine Zeta-Jones) face ao casamento é tudo menos infundada.
Como diria Woody Allen, love fades. Depois resta apenas uma vontade irresistível de fazer sangue.
Os Tribunais estão cheios de ex-casais apaixonados em disputas intermináveis de natureza patrimonial. Quando o amor acaba luta-se com unhas e dentes por tudo o que estiver ao alcance. Desde a valiosa moradia de férias até ao jogo de toalhas de casa de banho. Sem exagero.
E podemos mesmo afirmar que a sociedade em que vivemos e o sistema judicial que a serve, não só permite como até incentiva estes comportamentos.
Vivemos dias de profundo materialismo, em que o acesso ao conforto e aos prazeres de uma vida burguesa se assumem como valor supremo, claramente acima de quaisquer recompensas de índole espiritual.
Quando o amor acaba há que garantir o conforto material futuro. É a compensação pelo tempo investido na relação, agora aparentemente perdido, e simultaneamente o castigo para quem dele usufruiu, imerecidamente.
Se não souber como fazê-lo, há quem prontamente se disponha a ajudar.
E esse é outro aspecto pertinente do filme. A denúncia de uma sociedade que soube construir toda uma economia à volta do fim do casamento. Desde as poderosas sociedades de advogados que ganham fortunas com os divórcios, até aos investigadores privados brilhantemente caricaturados pelo personagem Gus Petch (Cedric the Entertainer). Até o Estado, a pretexto do cumprimento das funções administrativa e judicial, não abdica do seu generoso quinhão, expresso em taxas cobradas pelos diversos serviços a quem é necessário recorrer para instruir os processos e bem assim em impostos cobrados sobre as transmissões patrimoniais decorrentes da partilha.
Parece-me assim que a visão que a sociedade contemporânea espelha do casamento consegue ser ainda mais cínica do que a expressa neste filme.
Sob a aparência de uma comédia romântica inspirada na eterna luta de sexos, imortalizada no grande ecrã por Cary Grant e Katherine Hepburn, os irmãos Coen apresentam-nos a imagem reflectida da nossa sociedade doente, cínica e materialista.
Não admira pois que até a televisão comercial se interesse por este gigantesco mercado matrimonial, através dos reality shows.
No adequado vernáculo de Gus Petch, vale tudo “To Nail His Ass”!
Or hers…

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Memórias de Guerra


Waltz With Bashir (2008)

Realizador: Ari Folman
Com: Ari Folman, Miki Leon, Ori Sivan, Yehezkel Lazarov, Ronny Dayag, Shmuel Frenkel, Zahava Solomon, Ron Ben-Yishai, Dror Harazi

Nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 1982, milícias falangistas, fiéis ao presidente libanês Bashir Gemayel, assassinado dois dias antes num ataque bombista que vitimou igualmente vinte e seis outros membros do seu partido, vingaram a morte do líder massacrando milhares de palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, sobretudo idosos, mulheres e crianças, sob o olhar complacente dos soldados israelitas que ocupavam Beirute Ocidental.
Ari Folman era um dos soldados israelitas colocados nas imediações dos campos.
Waltz With Bashir é assim um filme na primeira pessoa. Uma viagem através da memória pessoal de Folman, em busca das recordações desses dias terríveis, através de entrevistas sucessivas com camaradas que com ele estiveram no Líbano e testemunhas do conflito.
Os horrores da guerra e dos massacres são apresentados num filme de animação, terrivelmente belo, num onírismo deliberado que pretende precisamente evocar a progressiva reconstituição da memória pessoal e colectiva acerca do conflito.
Folman optou por um estilo que faz lembrar os comics norte-americanos, mas ao juntar-lhe a cor, quase sempre em tons escuros e sombrios, acentua significativamente o dramatismo da obra.
É contudo notória uma progressiva transição da paleta para cores mais claras, à medida que o filme se aproxima do fim. A mudança simboliza a progressiva reconstituição da memória do autor, culminando mesmo em filmagens reais dos cadáveres das vítimas dos massacres, empilhados nos campos, e das manifestações de pesar dos seus familiares, no final do filme.
Como se das trevas se fizesse luz perante uma verdade finalmente revelada.
Embora a obra não seja assumidamente política, é antes de mais um testemunho da experiência pessoal do autor e um manifesto pacifista, não deixa por isso de apontar responsabilidades aos comandantes israelitas e a Ariel Sharon, ao tempo Ministro da Defesa de Israel.
Apesar de as tropas israelitas não terem cometido directamente os massacres, tiveram conhecimento deles e nada fizeram para os evitar. O filme acusa mesmo Sharon de ter deliberadamente ignorado as informações que lhe foram transmitidas sobre os massacres, facto aliás concluído igualmente pela Comissão Kahan designada pelo governo israelita para investigar os crimes.
As chefias militares terão passivamente permitido que os massacres fossem praticados diante dos seus soldados sem tomarem qualquer iniciativa para os evitar.
Nesse sentido Folman chama claramente a atenção para o paradoxo que constitui o facto de os filhos das vítimas de Auschwitz terem servido de cúmplices de crimes similares.
É igualmente interessante que, no início do filme, quer o autor quer os seus camaradas de armas entrevistados, sofram todos de uma estranha amnésia que os impede de recordar os factos ocorridos durante a guerra do Líbano.
É legítimo inferir que tal amnésia, mais do evocar traumas de guerra, seja uma acusação directa ao povo israelita e à comunidade internacional, por ter permitido que Sharon, apesar de pessoalmente responsabilizado pelo envolvimento nos massacres, continuasse a integrar o executivo israelita. Na verdade apesar de se ter demitido do cargo de Ministro da Defesa em 1982, na sequência das conclusões da Comissão de investigação aos massacres, continuou no Governo como Ministro sem pasta e ocupou mesmo, entre 2001 e 2006, o cargo de Primeiro-Ministro de Israel.
A recuperação da memória colectiva é assim também um dos objectivos claros do filme.
Mais do que exorcizar fantasmas do passado, Folman pretendeu construir uma obra que mostre a irracionalidade da guerra. Um testemunho na primeira pessoa para as gerações mais novas de que a guerra nada tem de digno ou de heróico.
Apenas drama e degradação.

domingo, 24 de janeiro de 2010

A Arte da Morte


Okuribito (2008)

Realizador: Yojiro Takita
Com: Masahiro Motoki, Tsutomu Yamazaki, Ryoko Hirosue, Kazuko Yoshiyuki, Kimiko Yo, Takashi Sasano, Tetta Sugimoto, Tôru Minegishi, Tatsuo Yamada, Yukari Tachibana

Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) é violoncelista numa orquestra de Tóquio. Apesar da qualidade do trabalho desenvolvido o público não comparece aos concertos, o que leva à dissolução da orquestra e ao desemprego de Daigo.
É confrangedora a cena em que assistimos à interpretação da nona sinfonia de Beethoven, com toda a pompa e eloquência que a obra exige, com mais de uma centena de músicos e cantores em palco, para uma plateia quase vazia.
A dissolução da orquestra leva Daigo a reconsiderar a sua vida.
Será que fez uma boa opção enveredando pela carreira de músico profissional? Será que possui o talento e a perseverança necessários para prosseguir nesse caminho?
Incapaz de continuar a pagar as prestações do seu dispendioso violoncelo decide vendê-lo e regressar, com a sua jovem mulher Mika (Ryoko Hirosue), para Yamagata, a pequena cidade do interior onde nasceu e onde a mãe, recentemente falecida, lhe deixou uma casa.
O regresso a Yamagata é, desde logo, um confronto com a morte da mãe e com as recordações de infância. Daigo não esteve presente no funeral da mãe porque se encontrava no estrangeiro e não conseguiu regressar a tempo de assistir à cerimónia, facto que, de algum modo, se recrimina.
O pai deixou-os quando era ainda uma criança, o que Daigo nunca lhe perdoou. Não sabemos o que a mãe pensava sobre o assunto, mas Mika observa que ainda devia amar o marido, porque guardou religiosamente a sua colecção de discos. Foi o amor do pai pela música que levou Daigo a aprender violoncelo.
Instalados na casa materna em Yamagata torna-se necessário assegurar a subsistência, pelo que Daigo responde a um anúncio do jornal, para o que julgava ser um emprego numa agência de viagens. Sucede porém que as viagens em questão eram para mais longe do que Daigo supunha… A agência NK é na verdade uma empresa de Nokanshi, o cerimonial fúnebre japonês de preparação dos cadáveres para o funeral e a cremação.
O confronto quotidiano com a morte assusta-o. De igual modo a aceitação social da profissão está longe de ser consensual. Muitos olham-no com desprezo, incluindo a mulher, quando finalmente descobre qual a nova profissão do marido.
Ao contemplar os salmões que sobem as águas revoltas do rio apenas para irem morrer no local onde nasceram, Daigo sente-se como eles, de regresso à sua terra natal para viver diariamente o drama da morte dos outros, até chegar a sua vez de partir.
Mas, estranhamente, o violoncelista afeiçoa-se ao seu novo trabalho. Ao ver trabalhar o seu mestre Ikuei Sasaki (Tsutomu Yamazaki) e ao contactar com os familiares agradecidos dos defuntos, Daigo apercebe-se da beleza, da arte e da humanidade da profissão. Dedica-se-lhe de alma e coração tornando-se um excelente profissional.
A mulher não compreende essa opção e pede-lhe para deixar aquele trabalho indigno. Como Daigo recusa, ela deixa-o e muda-se para casa dos pais.
Quando finalmente regressa, informa-o que está grávida, esperando que o nascimento do filho o resolva a abandonar tão estranha profissão.
É quando a morte de uma amiga comum, Tsuyako Yamashita (Kazuko Yoshiyuki), a perseverante dona da casa de banhos local, lhe permite assistir aos preparativos da defunta protagonizados pelo marido. A sensibilidade e carinho com que Daigo leva a cabo a tarefa convencem-na de que, afinal, estava errada, e de que a profissão escolhida pelo marido é de enorme dignidade.
Daigo irá ainda ser confrontado com um encontro singular com a morte, quando recebe a notícia do falecimento do pai, desaparecido há 30 anos. Relutantemente decide-se a comparecer no funeral onde acabará por experimentar na pele os efeitos da sua nova arte.
Uma obra muito bela e de uma enorme sensibilidade. Nunca a morte foi filmada de modo tão tranquilo e poético como neste Okuribito de Yôjirô Takita.
Verdadeiramente, um filme que não se esquece.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Crise de Valores


Burn After Reading (2008)

Realizador: Ethan & Joel Coen
Com: George Clooney, Frances McDormand, Brad Pitt, John Malkovich, Tilda Swinton, Richard Jenkins, Elizabeth Marvel, David Rasche, J. K. Simmons, Olek Krupa, Michael Countryman

Mesmo quando a imaginação falte em Hollywood e o público delire com a versão 3D da última sequela do remake de um filme de sucesso da década de 60, podemos sempre contar com os irmãos Coen para nos proporcionarem deliciosos momentos de ironia sobre o cinema e a sociedade norte-americana contemporâneos.
O thriller de espionagem tem um lugar de destaque na história do cinema. O fim da Segunda Guerra Mundial e o início do período a que se convencionou chamar de Guerra Fria, alimentou a imaginação de autores e público, surgindo variadíssimas obras dedicadas às vidas conturbadas de espiões do lado de cá e de lá da cortina de ferro.
Mas tudo isso passou à história. Hoje não há cortina de ferro e russos e americanos vivem numa lua-de-mel de conveniências mútuas.
Ainda haverá público para um filme de espionagem que não seja um mero pretexto para coreografar uma mão-cheia de cenas de pancadaria e violência gratuita?
Com Burn After Reading, os irmãos Coen provam-nos que sim, desde que tenhamos sido abençoados com um sentido de humor.
Osbourne Cox (John Malkovich) é um analista da CIA que abusa do álcool. É um modesto funcionário mediano sem acesso a informações importantes. Ainda assim a bebida começa a influenciar o seu trabalho e o superior responsável, o oficial Palmer (David Rasche), um nome que evoca Harry Palmer e os romances de Len Deighton, retira-o do departamento e propõe-lhe um lugar menos atractivo. Cox, despeitado, prefere bater com a porta e dedicar-se a escrever as suas memórias.
Não que tenha alguma coisa de importante a contar.
Quando informa a mulher, a pediatra Katie (Tilda Swinton), do desejo de escrever as suas memórias, ela limita-se a rir, sarcasticamente. Mas Cox está determinado a contar os seus “segredos”, apesar de confessar ao pai incapacitado, também ele um funcionário público reformado: “Trabalhar no governo não é o mesmo de quando o pai trabalhava no Departamento de Estado. As coisas agora são diferentes. Não sei, talvez seja pelo fim da Guerra Fria. Agora parece que é tudo burocracia e nenhuma missão.”
Sucede que Katie mantém um caso amoroso com Harry Pfarrer (George Clooney), um funcionário do Departamento do Tesouro, por sua vez casado com Sandy (Elizabeth Marvel), uma escritora de contos infantis. O desemprego do marido fornece-lhe o pretexto que faltava para avançar com o divórcio.
A conselho do seu advogado sem escrúpulos (J. R. Horne), resolve recolher informações sobre o marido, com vista a uma futura partilha, entre as quais uma cópia das suas memórias. O CD contendo estas informações é deixado inadvertidamente por uma funcionária do advogado (Judy Frank) no ginásio.
Começa então uma trama digna de Hitchcock.
Manolo (Raul Aranas), um modesto funcionário do ginásio, descobre o CD e mostra-o a Chad Feldheimer (Brad Pitt), um instrutor de ideias muito curtas. Este por sua vez mostra-o a outra colega, Linda Litzke (Frances McDormand), e ao responsável pelo ginásio, Ted Treffon (Richard Jenkins).
Linda andava obcecada com a ideia de efectuar uma operação estética para a qual não tinha dinheiro, pelo que resolve associar-se a Chad e chantagear Cox, para a devolução do CD.
Como este não quer pagar, o duo de chantagistas dirige-se à embaixada russa com vista à venda dos “importantes” segredos de Estado.
Entretanto Linda inicia um relacionamento com Harry, desconhecendo obviamente a sua ligação a Katie.
A CIA, alertada por um contacto na Embaixada russa, vai seguindo atentamente a teia, sem perceber muito bem o que fazer com ela, já que as informações incluídas nas memórias de Cox, nada valem.
O resultado de toda esta embrulhada é hilariante, no estilo de humor negro a que os irmãos Coen nos habituaram, e envolve mortes, comas, detectives privados, perseguições, fugas para a Venezuela e uma operação plástica paga pela CIA.
No entretanto assistimos à decadência da sociedade norte-americana contemporânea, em que valores como o amor, o casamento, o patriotismo, a ética profissional e a amizade nada valem.
Tudo se faz para financiar uma lipo-aspiração…

Esqueletos Escondidos


Caché (2005)

Realizador: Michael Haneke
Com: Daniel Auteuil, Juliette Binoche, Maurice Bénichou, Annie Girardot, Bernard Le Coq, Walid Afkir, Lester Makedonsky, Daniel Duval, Nathalie Richard, Denis Podalydès, Aïssa Maïga

Haneke continua a explorar o lado negro da personalidade humana e, paralelamente, das sociedades francesa e ocidental as quais, sob uma capa de aparente democracia e tolerância, mantêm latentes profundos sentimentos de ódio e de racismo.
Georges Laurent (Daniel Auteuil) é um crítico literário de sucesso com um programa na televisão pública onde fomenta o debate e o confronto de ideias. Mas sob esse aparente universalismo, Laurent esconde um segredo de ódio e intolerância.
Laurent descende de uma rica família agrária. Um casal argelino, empregados dos pais, foi assassinado durante o massacre de 17 de Outubro de 1961, em que centenas de argelinos foram mortos pela polícia comandada por Maurice Papon, prefeito de Paris e antigo membro do regime de Vichy, e os seus corpos lançados ao Sena. Deixaram uma criança órfã, Majid (Malik Nait Djoudi), ao cuidado dos pais de Georges.
Sensibilizados com o crime e preocupados com o futuro da criança os pais de Georges decidem adoptá-lo. Mas os ciúmes doentios do jovem Georges (Hugo Flamigni) levam-no a inventar doenças e instintos violentos de que a acusa Majid aos pais. Estes acabam por decidir enviá-lo para um orfanato.
Este incidente determinaria a vida das duas crianças. Georges cresce rico, rodeado dos cuidados e carinhos dos pais e destinado a uma vida de sucesso. Majid (Maurice Bénichou) cresce no orfanato, onde ensinam o ódio. É-lhe negada a educação, ficando assim destinado a uma vida de pobreza e dificuldades.
Georges e os pais esquecem o incidente, não lhe dedicando grande importância. Majid, pelo contrário, ao ver o programa de Georges na televisão, é confrontado semanalmente com a vida que poderia ter tido, mas que lhe foi negada pelo ódio deste.
Georges vive com a mulher Anne (Juliette Binoche) e o filho Pierrot (Lester Makedonsky) numa casa dos subúrbios de Paris. A família começa a receber cassetes anónimas com filmes da sua casa sob vigilância e desenhos perturbantes (mais tarde saberemos que os desenhos evocam episódios da infância de Georges e Majid). O medo apodera-se do casal Laurent.
Os vídeos seguintes mostram a casa da infância de Georges e Majid e uma rua, um corredor e uma porta desconhecidos, que Georges descobre serem da casa do argelino.
O reencontro dos dois revela um Georges sem remorsos e um Majid conformado com a sua sorte, que nega ser o autor das cassetes. Mas Georges não acredita. Continua a usar Majid como bode expiatório dos seus pecados.
Quando o filho Pierrot desaparece (mais tarde saberemos que a criança ficou em casa de um colega e não quis avisar os pais) acusa Majid de rapto, levando a polícia a sua casa e provocando a detenção deste e do seu filho (Walid Afkir).
O reencontro acaba por se revelar fatal para Majid. Consumido pela injustiça e pela falta de remorso de Georges, suicida-se à frente do “irmão”, num grito final de revolta que Georges se recusa a compreender.
Caché é um filme incómodo em que os esqueletos no armário de Georges são também os da França e da sociedade ocidental (expressos nas imagens da guerra no Médio Oriente que passam na televisão, sem que ninguém lhes ligue importância).
Paris, capital assumida da democracia e da tolerância, foi o palco do massacre de 1961 que arrumou, esquecido, nos arquivos da sua memória colectiva. O luxo da burguesia “europeia” contrasta com a pobreza e a marginalidade das comunidades emigrantes, designadamente a argelina. Estas continuam a servir de bode expiatório para todos os problemas, nomeadamente no discurso dos sectores mais reaccionários da sociedade francesa.
Mas há uma nova geração bem diferente de Majid. O ciclista negro (Diouc Koma) que quase atropela Georges à saída da esquadra de polícia responde-lhe com firmeza aos insultos. O filho de Majid não partilha do conformismo do pai. Ele enfrenta Georges no seu emprego acusando-o de ser um homem sem consciência. Enquanto o pai cresceu num orfanato, onde ensinam o ódio, mas viveu e educou o filho na tolerância, Georges cresceu com amor e riqueza, mas continua intolerante e racista. O episódio do desaparecimento de Pierrot é também revelador de que o filho do casal Laurent começa a desenvolver sentimentos de revolta.
No final vemos, com o mesmo distanciamento e frieza demonstrados por Georges e pela sociedade francesa, o dramático episódio da ida de Majid para o orfanato.
Vemos ainda as crianças que saem da escola de Pierrot, no bulício natural da juventude. Um convite à reflexão. Sobre a maldade do homem, que se manifesta mesmo em criança, e sobre a esperança que ainda poderemos manter quanto às gerações futuras.
Repetirão elas os erros do presente e do passado?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Conhece-te a Ti Mesmo


Smultronstallet (1957)

Realizador: Ingmar Bergman
Com: Victor Sjöström, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindahl, Folke Sundquist, Björn Bjelfvenstam, Naiam Wifstrand, Gunnel Broström, Gertrud Fridh

Conhece-te a ti mesmo

Seguindo a máxima socrática inscrita, há 2500 anos atrás, nas paredes do templo de Apolo, em Delfos, Ingmar Bergman impõe ao protagonista de Smultronstallet, o eminente médico e investigador Dr. Isak Borg (Victor Sjöström) de 78 anos de idade, uma viagem de Estocolmo até Lund, onde irá receber um prémio honorário pelos 50 anos de carreira atribuído pela Universidade, que é, simultaneamente, uma viagem de auto-conhecimento, de profunda reflexão e balanço sobre a sua vida.
Isak Borg é um solitário. Ele confessa-o logo no monólogo inicial do filme “A nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda a minha vida social. Mas tornou a minha velhice solitária. Sempre trabalhei muito, e estou grato por isso. Comecei a trabalhar para sobreviver e acabei amando a ciência.”
Isak assume a sua misantropia. O relacionamento com as pessoas é difícil, conduz a frequentes críticas e discussões. Por isso se isolou e dedicou exclusivamente ao trabalho. Mas agora, chegada a velhice, sente-se só.
O diálogo com a empregada Agda (Jullan Kindahl) reflecte o paradoxo da vida de Isak. Ele assume que tem a sorte de ter uma boa empregada, mas mostra-se intransigente, incapaz de aceitar as suas opiniões, ingrato mesmo para quem há tanto tempo (sabemos que a mulher morreu há 30 anos) o acompanha e lhe dá apoio. “Não se esqueça de que não somos casados”, afirma no remate da discussão, “Todas as noites dou graças a Deus por isso”, replica-lhe Agda. E mais adiante “Não me vou esquecer como são os velhos egoístas, que só pensam em si mesmo e se esquecem de quem os serviu lealmente durante 40 anos”.
Durante a noite que precede a viagem, Isak tem um sonho estranho. Numa rua deserta de uma parte desconhecida da cidade vê um relógio sem ponteiros, um homem desfigurado que se desfaz e um funeral, que descobre ser o seu. O cadáver ganha vida, perante o horror de Isak, estende-lhe a mão e suplica silenciosamente ajuda.
O sonho é uma mensagem onírica (vinda do seu subconsciente) de que é chegada a hora de fazer um balanço da sua vida, que a imagem que tem de si mesmo é desfigurada, que a morte inevitável está a aproximar-se rapidamente e que ainda está a tempo de redimir-se.
O sonho deixa marcas no protagonista que, de manhã, decide viajar para Lund de carro e não de avião. Uma viagem que será simultaneamente um caminho para o auto-conhecimento.


A Viagem

Marianne (Ingrid Thulin), a nora de Isak, acompanha-o na viagem de carro até Lund. Será o primeiro espelho através do qual Isak verá reflectida a sua imagem desfigurada. As confissões, por vezes duras, sucedem-se, levando Isak a reconsiderar a imagem que possuía de si mesmo.
Após recriminar Marianne pelo hábito de fumar e de tecer algumas considerações sexistas sobre os vícios do homem e da mulher, sucede o seguinte diálogo:

“- O que tem contra mim?
- Quer uma resposta sincera?
- Quero.
- É um velho egoísta. Não tem consideração por ninguém e só se ouve a si mesmo. Mas esconde bem isso atrás da sua civilidade e charme. Mas é egoísta. Apesar de lhe chamarem um benemérito, quem convive consigo sabe como é na realidade. Não nos engana. Lembra-se do que disse quando eu me mudei? Achei que nos ajudaria e pedi para ficar em sua casa. Lembra-se do que disse então?
- Sim, disse que era bem-vinda.
- Deve ter-se esquecido, mas disse ”Não tente envolver-me nos seus problemas conjugais, cada um resolve os seus problemas”.
- Eu disse isso?
- E não foi só isto?
- A sério?
- Foram estas as suas palavras: “Não respeito o sofrimento psicológico, por isso não se lamente. Se precisar de ajuda posso arranjar-lhe um psicanalista. Ou um padre, está em voga.”
- Eu disse isso?
- Tem opiniões categóricas. Detestaria depender de si.”


Marianne põe a nu o carácter frio e egoísta de Isak, que se contrapõe à emotividade e impulsividade dela. Ficamos igualmente a saber que Evald (Gunnar Björnstrand), o filho de Isak e marido de Marianne, também médico e residente em Lund, é parecido com o pai.
Facilmente se intuem os motivos porque está separado de Marianne. O consenso dos interlocutores acerca das suas semelhanças com o pai não deixa margem para dúvidas: ambos têm os seus princípios, nas palavras eufemísticas de Isak.
Mas Marianne consegue surpreender Isak ao afirmar que ainda assim gosta de si, que tem pena dele e sobretudo, que o filho, apesar de o respeitar, o odeia.


Morangos Silvestres

Incomodado pelas palavras incisivas de Marianne, Isak decide parar e mostrar-lhe a casa onde passou férias, com os seus 10 irmãos e irmãs, até à idade de 20 anos. Uma viagem no tempo que lhe permitirá realizar um balanço sobre a sua juventude.
Contemplando o canteiro de morangos silvestres da sua infância Isak recorda a vida com os pais, os irmãos e irmãs e a prima Sara, por quem se apaixonou.

“É possível que eu tenha ficado sentimental. Talvez estivesse cansado e nostálgico. Foi então que percebi que pensava em coisas que estavam ligadas à minha infância. Não sei como isto aconteceu mas a luz do dia clareou mais ainda e as imagens das minhas recordações passaram perante os meus olhos com toda a força da realidade.”

Confrontado com a casa da sua infância e o canteiro de morangos silvestres Isak despe o manto de frieza com que se cobria e deixa-se dominar pelos sentimentos há muito reprimidos. Revê momentos fundamentais da sua vida sob uma nova luz (a luz do dia clareou) que o atingiu com toda a força da realidade.
Isak tem uma epifania.
Vê a prima Sara (Bibi Andersson) a apanhar morangos silvestres para o aniversário do tio Aron (Yngve Nordwall ) e o seu irmão Sigfrid (Per Sjöstrand) a beijá-la, apesar da resistência de Sara que jura fidelidade ao amor declarado a Isak, de quem estaria secretamente noiva.
Mais tarde assiste à confidência que Sara faz à sua irmã Charlotta (Gunnel Lindblom), sobre o incidente:

“- Isak é tão gentil. Ele é fino, honesto e sensível. Quer sempre ler poesias, falar da vida após a morte e gosta de tocar piano. Só tenta beijar-me no escuro e fala do pecado. Ele é muito melhor do que eu. Nem sei como me sinto. Não há perdão para mim. Às vezes sinto-me muito mais velha do que ele. Ele parece um menino, apesar de termos a mesma idade. E Sigfrid é tão perverso e excitante! Quero ir para casa! Não quero passar o Verão a ser ridicularizada por todos.”

Isak finalmente percebe porque razão, estando ambos apaixonados, Sara acabaria por se casar com o seu irmão Sigfrid. Enquanto Isak era honesto, mas reprimido e respeitador dos costumes, Sigfrid era impulsivo, perverso e excitante. A sua frieza e incapacidade para viver a juventude com impetuosidade e paixão, deixando exteriorizar os seus sentimentos e instintos, tinham-lhe custado o amor de Sara, por quem estava verdadeiramente apaixonado.
Ao ser confrontado com a dura verdade revelada confessa que “um sentimento de vazio e tristeza invadiu o meu coração”.


O Olho que se Vê a Si Mesmo

No diálogo de Platão denominado “Alcibíades I”, Sócrates fala de um olho que se quer ver a si mesmo. Para tal deveria olhar para algo que o reflectisse, do mesmo modo que uma alma, se quiser conhecer-se a si mesma, tem de olhar para outra alma semelhante a ela.
Isak irá viver essa experiência com a entrada em cena de três novos personagens: Sara (uma jovem homónima da prima, também interpretada por Bibi Andersson), Anders (Folke Sundquist ) e Victor (Björn Bjelfvenstam).
Os três jovens querem partir para Itália e Sara pede para seguirem viagem no carro de Isak até Lund.
O triângulo da infância está refeito perante o olho de Isak que se vê reflectido nele.
A jovem Sara, livre, ousada e namoradeira, viaja com os dois pretendentes: o sorumbático e religioso Anders e o extrovertido e livre-pensador Victor. Os dois irão formular e confrontar, ao longo da viagem, as suas teorias e propostas de vida opostas, perante os olhos curiosos de Sara e de Isak.
Enquanto espera no carro com Isak que Victor e Anders terminem uma das suas intermináveis discussões, Sara pergunta-lhe:

“- De qual deles gosta mais?
- De qual deles tu gostas mais?
- Não sei. Anders será pastor e é muito carinhoso. Mas ser mulher de pastor? Victor também é bom e irá mais longe.
- Em que sentido?
- Um médico ganha mais dinheiro. Pastores estão fora de moda. Mas ele tem pernas e pescoço bonitos. Como pode acreditar em Deus?”


Ironicamente Isak é médico. Mas acredita em Deus e foi ele o pastor no triângulo formado com a prima Sara e o seu irmão Sigfrid.
Prosseguindo viagem Isak adormece, enquanto chove e Marianne conduz.
“Dormi mas fui atormentado por sonhos e imagens que me pareciam tangíveis e humilhantes. Havia algo muito forte nestas imagens que penetrou na minha mente com determinação.”
No sonho, um Isak humilhado é confrontado pela prima Sara com a sua imagem reflectida num espelho. A humilhação decorre de Isak, mesmo velho e assustado, não aceitar a verdade e recusar ver a sua imagem reflectida no espelho. Isak julgou saber tudo, mas afinal não sabia nada. Perdeu o amor de Sara e ficou apenas com a dor e a humilhação de se ver preterido pelo irmão.


O Casal Alman

Durante a viagem sucede um acidente. Isak quase embate de frente com um Volkswagen que circula em contramão, conduzido por Berit Alman (Gunnel Broström). Logo após o despiste Sten Alman (Gunnar Sjöberg), marido de Berit, pede desculpas pelo sucedido. O casal discutia e Berit ia bater no marido quando perdeu o controlo do carro.
Perante estranhos Sten procura primeiro manter as aparências e inventar desculpas para o comportamento da mulher, esta porém não consegue deixar de recriminá-lo pelo seu egoísmo, vaidade e superficialidade.
O casal segue viagem no carro de Isak com Marianne ao volante. Sten, irónico, acusa Berit de falsidade e histeria. Afirma mesmo que olhá-la é como observar a morte. Berit responde-lhe com novas agressões.
Incomodada Marianne pára o carro e convida-os a sair, desculpando-se com os jovens que assistem à cena no banco de trás. Isak, apesar de silencioso, mostra-se igualmente incomodado pelo episódio.
Mais tarde o casal reaparecerá no sonho de Isak.
Sten leva Isak para um anfiteatro onde conduz um exame, alegadamente às suas competências médicas, perante uma assistência formada por vários alunos, com Sara, Anders e Victor na primeira fila. Porém o médico revela-se incapaz de responder às perguntas. Sten informa Isak que o primeiro dever de um médico é pedir perdão e de que foi acusado de culpa pela sua falecida mulher Karin (Gertrud Fridh). Berit desata a rir histericamente após Isak ter diagnosticado a sua morte.
Sten leva então Isak ao exterior onde o obriga a rever uma cena marcante da sua vida. Um episódio que Isak nunca conseguiu esquecer.
A sua falecida mulher Karin e o amante (Åke Fridell ) cometem adultério. Isak assiste a tudo passivamente. Karin imagina a reacção de Isak:

“Contarei tudo a Isak e já sei o que dirá:
“-Pobrezinha, tenho pena de ti.” - Como se fosse Deus.
Então vou chorar e dizer: “Sentes mesmo pena de mim?”
Ele dirá: “Sinto muita pena de ti”. Eu chorarei e pedirei perdão.
Então dirá: “Não precisas de pedir perdão, não há o que ser perdoado”.
Mas não é o que ele pensa. Ele é um homem frio.
Então ficará carinhoso e eu gritarei que está louco e que a sua demonstração de afecto me dá nojo.
Ele vai querer dar-me algo para dormir e dizer que compreende.
Direi que é tudo culpa dele.
Ele ficará triste e dirá que a culpa é minha. Mas não se importa com nada. É frio como gelo.”


O casal Alman é o espelho do casamento de Isak.
Tal como Sara, também Karin acusa Isak de ser frio como gelo, de viver sem paixão e de esse seu comportamento ser responsável pelo fim do casamento.
Berit parece morta, mas ri histericamente. Karin para não se sentir morta, comete adultério.
Tal como Sara, Isak também perderá Karin. Primeiro para o amante, depois para a morte.
No final da cena Isak pergunta a Sten qual será a pena.
Sten responde: “A de sempre. A solidão.”


Mais Assustadora do Que a Própria Morte

Durante a viagem Isak vai visitar a mãe (Naima Wifstrand), nonagenária, acompanhado por Marianne.
Esta começa por confundir Marianne com Karin, dizendo que não quer falar com a esposa de Isak: “Ela já nos causou muitas dores”. Desfeito o equívoco ainda assim não resiste a acusá-la: “Porque não está com Evald e os seus filhos?” Quando Marianne responde que não têm filhos persiste nas críticas: “Estes jovens de hoje são estranhos. Eu tive dez filhos.”A mãe de Isak mostra-lhes os brinquedos de criança dos seus filhos, enquanto se lamenta:

“- Dez filhos, todos mortos menos tu, Isak.
- Vinte netos. Evald é o único que me visita. Não estou a reclamar. Tenho quinze bisnetos que nunca vi. Mando cartas e presentes para todos nos seus aniversários. Recebo cartas de agradecimento, mas ninguém me visita, a não ser quando querem dinheiro emprestado. Eu devo ser muito cansativa.
- Não diga isso mãe.
- Também tenho outro defeito. Não morro. Todos os descendentes estão à espera e não há modo da herança sair…”


Mais tarde Marianne recordará a cena a Isak, com manifesto incómodo:

“- Quando o vi com a sua mãe senti muito medo.
- Não entendo.
- Eu pensei:
- Esta é a sua mãe, uma velha fria como gelo, de certa forma mais assustadora do que a própria morte;
- Este é o seu filho, e entre eles há uma grande distância. Ele sente-se um morto-vivo. E Evald sente-se no limar do frio e da morte.”


Marianne observa as semelhanças entre as três gerações.
A mãe, Isak e Evald, são frios e distantes, incapazes de manifestarem sentimentos e obcecados com a morte.
Todos acabam por afastar quem quer que se aproxime de si.
Todos parecem condenados à solidão, uma condição mais assustadora do que a própria morte.


A Esperança

A viagem mostra-se reveladora para Isak. Além de experimentar um penoso exercício de auto-conhecimento, descobre ainda que Marianne está grávida e que esse foi o motivo da separação de Evald, incapaz de aceitar a responsabilidade de trazer uma criança ao mundo.
De certo modo compreende-se a posição de Evald quando contemplamos as vidas de Isak e da sua mãe. Pai e filho sentem-se mortos, apesar de vivos.
Para Evald:

“É absurdo trazer uma criança para este mundo e mais absurdo é achar que ela viverá bem. Eu fui um filho indesejado de um casamento infernal. Será que sou filho do meu pai?”
“Não existe certo e errado. Agimos conforme o necessário. Isto é primário. O necessário para ti é viver, existir e procriar. Para mim é morrer, simplesmente morrer.”


Evald é um niilista. Para ele, após a destruição moral tudo cai no vazio. A vida é desprovida de qualquer sentido, reina o absurdo e o niilista não pode ver outra alternativa senão esperar pela morte (ou provocá-la). A circunstância de ter crescido num casamento infeliz, contemplando a destruição progressiva da mãe e o vazio emocional do pai e da avó marcaram-no profundamente. Não quer transmitir esse legado a um filho.
Mas Marianne não é assim. É emotiva e impulsiva e está determinada a ter o filho, apesar da oposição do marido. Refugia-se junto de Isak, esperando que Evald, pela sua ausência, reconsidere.
Também ela reviu o seu casamento no casal Alman mas, como ama Evald, recusa-se a perder a esperança. A terminar como Berit ou Karin.


Recordações

A cerimónia é eloquente. Marianne, Evald e Agda, que não desistiu de Isak e viajou de avião para assistir à cerimónia, assistem orgulhosos na primeira fila à consagração de Isak.
À noite Sara e os rapazes fazem uma serenata de despedida a Isak. Sara diz-lhe que o amará hoje, amanhã e sempre, o que deixa o médico visivelmente sensibilizado.
Isak desculpa-se perante uma Agda surpreendida pela mudança.
Evald e Marianne saem juntos para o baile, aparentemente reconciliados. Evald confessa ao pai que pediu à mulher para ficar consigo, que não pode viver sem ela e que ela fará como entender, quanto ao filho.
Isak agradece a Marianne a companhia durante a viagem e confessa-lhe que gosta muito dela. Sentimento que Marianne retribui.
Isak fica então entregue às suas recordações de infância.
Talvez tentando descobrir, como Marion do filme Another Woman de Woody Allen (um dos dois filmes que Allen escreveu e realizou baseados em Morangos Silvestres – o outro é Deconstructing Harry) se uma recordação é algo que se tem ou algo que se perdeu.
Finalmente em paz.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Flagelos


La Pianiste (2001)

Realizador: Michael Haneke
Com: Isabelle Huppert, Annie Girardot, Benoît Magimel, Susanne Lothar, Udo Samel, Anna Sigalevitch, Cornelia Köndgen, Thomas Weinhappel, Georg Friedrich, Philipp Heiss, William Mang

Tal como em “O Laço Branco”o austríaco Michael Haneke revela-se em “A Pianista” um cineasta com particular vocação para explorar as facetas mais negras da personalidade humana.
Erika Kohut (Isabelle Huppert) é uma pianista e professora do Conservatório de Viena, artista brilhante e reconhecida (ainda que a atenção que receba fique provavelmente aquém das suas expectativas e sobretudo, das de sua mãe), exímia intérprete de Schubert, mas com uma vida pessoal bem mais problemática do que a sua carreira artística e académica levaria a supor.
Apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, Erika vive com a mãe (Annie Girardot), uma mulher dominadora e possessiva, com quem mantém uma complexa relação de amor-ódio, com frequentes episódios de violência física e psicológica.
A mãe reconhece e exalta as suas qualidades artísticas, mas de forma obstinada. Incute-lhe um espírito competitivo doentio que Erika descarrega nos alunos. Apesar do seu brilhantismo e inegável amor pela música, Erika é uma professora austera, exigente muito para além do razoável, fria e por vezes mesmo vingativa relativamente aos pupilos.
Dir-se-ia que a mãe vive, através da filha, um reconhecimento social e artístico que não teve, exigindo-lhe nada menos do que a perfeição, e que a filha, obrigada a viver a vida por procuração da mãe, se ressente desse domínio consentido, manifestando de forma quase indiscriminada, o seu ódio para com a mãe e o mundo.
O ódio e a frustração doentios de Erika manifestam-se de várias maneiras. Pela violência física e verbal no trato com a mãe e os alunos. Pelos hábitos sexuais bizarros. Pelo ciúme incontrolável e vingativo. Até pela auto-mutilação ocasional.
Do pai sabemos que enlouqueceu e que está internado num hospício, recebendo Erika a notícia da sua morte, pela mãe, quase no final do filme. Fica a dúvida se a loucura de Erika é uma consequência da genética paterna ou se, opção bastante mais interessante do ponto de vista do drama psicológico apresentado no filme, a loucura de ambos resulta da mútua convivência com a personalidade terrível da mãe.
Psicologicamente Erika vive num complexo de Édipo não resolvido. A sua personalidade permanece estranhamente ligada à da mãe, numa relação de amor e ódio que atinge contornos sexuais.
Surge então Walter Klemmer (Benoît Magimel), jovem, bonito e exímio pianista.
Interessa-se por Erika, apesar da diferença de idades, e começa a manifestá-lo de modo cada vez mais ostensivo.
Esta intromissão de Walter no mundo pequeno e doentio de Erika começa por irritá-la, procurando afastá-lo de qualquer modo ao seu alcance. Mas como ele não desiste, Erika começa a dedicar-lhe um sentimento de posse, a única forma que conhece de manifestar o amor. Uma crise de ciúmes gera uma vingança terrível sobre uma aluna e serve igualmente como mensagem a Walter de que o seu sentimento é, de algum modo, correspondido.
Mas a relação revela-se impossível. Walter está apaixonado por Erika, mas esta é incapaz de amar. O amor para si é um terrível jogo de domínio, de posse e de sexualidade frustrada, tal como o que vive em casa. O seu objectivo principal parece ser o de usar Walter como o carrasco das suas frustrações, punindo-a pelas suas acções, e através dela também a sua mãe.
Na carta que lhe escreve, descrevendo minuciosamente todos os jogos sexuais que espera dele, diz “É esse o meu maior desejo. Pés e mãos atadas atrás das costas, e fechada à chave perto da minha mãe, não podendo ela alcançar-me por a porta estar fechada e assim ficar até de manhã. Não te preocupes com a minha mãe, esse problema é meu.”
Erika quer ser punida (como já era notório pelos seus recorrentes ataques de auto-mutilação) mas quer que essa punição ocorra junto à mãe, para que também ela fique consciente da agressão e igualmente impotente. Para que, através do seu sofrimento, também a mãe seja punida.
A sua sexualidade desenvolve-se num triângulo perverso no qual a mãe ocupa necessariamente um dos vértices.
Walter transformará o seu amor em desprezo e acabará por realizar o desejo de Erika, embora impondo-lhe um coito que esta manifestamente não desejava.
A reacção das duas mulheres na manhã seguinte é surpreendente. Como se nada se tivesse passado, aprumam-se e vestem-se a rigor para o concerto em que Erika irá acompanhar um aluno ao piano.
Apenas Erika esconde uma faca na mala, com propósitos desconhecidos.
A naturalidade com que a mãe reage à violação e às agressões físicas sofridas pela filha na noite anterior, quase à sua frente, denuncia que talvez também ela ache que a punição que ambas sofreram foi merecida. Que talvez a ligação profunda, doentia e sexual que a filha sente por si, seja correspondida. Que talvez aceite o papel de vértice no triângulo amoroso imposto pela filha.
No átrio do teatro Erika espera por Walter com a faca escondida na mala. Antecipa-se o drama. Este chega alegre, efusivo e acompanhado pelas colegas da sua idade, não dedicando à professora mais do que um cumprimento, quase desrespeitoso.
Erika despeitada espeta a faca no peito, regressando aos auto-castigos, e afasta-se do teatro para um fim incerto.
Um drama psicológico poderoso e incómodo.

Trailer till La pianiste från rstvideos trailerarkiv.