sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Conhece-te a Ti Mesmo


Smultronstallet (1957)

Realizador: Ingmar Bergman
Com: Victor Sjöström, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindahl, Folke Sundquist, Björn Bjelfvenstam, Naiam Wifstrand, Gunnel Broström, Gertrud Fridh

Conhece-te a ti mesmo

Seguindo a máxima socrática inscrita, há 2500 anos atrás, nas paredes do templo de Apolo, em Delfos, Ingmar Bergman impõe ao protagonista de Smultronstallet, o eminente médico e investigador Dr. Isak Borg (Victor Sjöström) de 78 anos de idade, uma viagem de Estocolmo até Lund, onde irá receber um prémio honorário pelos 50 anos de carreira atribuído pela Universidade, que é, simultaneamente, uma viagem de auto-conhecimento, de profunda reflexão e balanço sobre a sua vida.
Isak Borg é um solitário. Ele confessa-o logo no monólogo inicial do filme “A nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda a minha vida social. Mas tornou a minha velhice solitária. Sempre trabalhei muito, e estou grato por isso. Comecei a trabalhar para sobreviver e acabei amando a ciência.”
Isak assume a sua misantropia. O relacionamento com as pessoas é difícil, conduz a frequentes críticas e discussões. Por isso se isolou e dedicou exclusivamente ao trabalho. Mas agora, chegada a velhice, sente-se só.
O diálogo com a empregada Agda (Jullan Kindahl) reflecte o paradoxo da vida de Isak. Ele assume que tem a sorte de ter uma boa empregada, mas mostra-se intransigente, incapaz de aceitar as suas opiniões, ingrato mesmo para quem há tanto tempo (sabemos que a mulher morreu há 30 anos) o acompanha e lhe dá apoio. “Não se esqueça de que não somos casados”, afirma no remate da discussão, “Todas as noites dou graças a Deus por isso”, replica-lhe Agda. E mais adiante “Não me vou esquecer como são os velhos egoístas, que só pensam em si mesmo e se esquecem de quem os serviu lealmente durante 40 anos”.
Durante a noite que precede a viagem, Isak tem um sonho estranho. Numa rua deserta de uma parte desconhecida da cidade vê um relógio sem ponteiros, um homem desfigurado que se desfaz e um funeral, que descobre ser o seu. O cadáver ganha vida, perante o horror de Isak, estende-lhe a mão e suplica silenciosamente ajuda.
O sonho é uma mensagem onírica (vinda do seu subconsciente) de que é chegada a hora de fazer um balanço da sua vida, que a imagem que tem de si mesmo é desfigurada, que a morte inevitável está a aproximar-se rapidamente e que ainda está a tempo de redimir-se.
O sonho deixa marcas no protagonista que, de manhã, decide viajar para Lund de carro e não de avião. Uma viagem que será simultaneamente um caminho para o auto-conhecimento.


A Viagem

Marianne (Ingrid Thulin), a nora de Isak, acompanha-o na viagem de carro até Lund. Será o primeiro espelho através do qual Isak verá reflectida a sua imagem desfigurada. As confissões, por vezes duras, sucedem-se, levando Isak a reconsiderar a imagem que possuía de si mesmo.
Após recriminar Marianne pelo hábito de fumar e de tecer algumas considerações sexistas sobre os vícios do homem e da mulher, sucede o seguinte diálogo:

“- O que tem contra mim?
- Quer uma resposta sincera?
- Quero.
- É um velho egoísta. Não tem consideração por ninguém e só se ouve a si mesmo. Mas esconde bem isso atrás da sua civilidade e charme. Mas é egoísta. Apesar de lhe chamarem um benemérito, quem convive consigo sabe como é na realidade. Não nos engana. Lembra-se do que disse quando eu me mudei? Achei que nos ajudaria e pedi para ficar em sua casa. Lembra-se do que disse então?
- Sim, disse que era bem-vinda.
- Deve ter-se esquecido, mas disse ”Não tente envolver-me nos seus problemas conjugais, cada um resolve os seus problemas”.
- Eu disse isso?
- E não foi só isto?
- A sério?
- Foram estas as suas palavras: “Não respeito o sofrimento psicológico, por isso não se lamente. Se precisar de ajuda posso arranjar-lhe um psicanalista. Ou um padre, está em voga.”
- Eu disse isso?
- Tem opiniões categóricas. Detestaria depender de si.”


Marianne põe a nu o carácter frio e egoísta de Isak, que se contrapõe à emotividade e impulsividade dela. Ficamos igualmente a saber que Evald (Gunnar Björnstrand), o filho de Isak e marido de Marianne, também médico e residente em Lund, é parecido com o pai.
Facilmente se intuem os motivos porque está separado de Marianne. O consenso dos interlocutores acerca das suas semelhanças com o pai não deixa margem para dúvidas: ambos têm os seus princípios, nas palavras eufemísticas de Isak.
Mas Marianne consegue surpreender Isak ao afirmar que ainda assim gosta de si, que tem pena dele e sobretudo, que o filho, apesar de o respeitar, o odeia.


Morangos Silvestres

Incomodado pelas palavras incisivas de Marianne, Isak decide parar e mostrar-lhe a casa onde passou férias, com os seus 10 irmãos e irmãs, até à idade de 20 anos. Uma viagem no tempo que lhe permitirá realizar um balanço sobre a sua juventude.
Contemplando o canteiro de morangos silvestres da sua infância Isak recorda a vida com os pais, os irmãos e irmãs e a prima Sara, por quem se apaixonou.

“É possível que eu tenha ficado sentimental. Talvez estivesse cansado e nostálgico. Foi então que percebi que pensava em coisas que estavam ligadas à minha infância. Não sei como isto aconteceu mas a luz do dia clareou mais ainda e as imagens das minhas recordações passaram perante os meus olhos com toda a força da realidade.”

Confrontado com a casa da sua infância e o canteiro de morangos silvestres Isak despe o manto de frieza com que se cobria e deixa-se dominar pelos sentimentos há muito reprimidos. Revê momentos fundamentais da sua vida sob uma nova luz (a luz do dia clareou) que o atingiu com toda a força da realidade.
Isak tem uma epifania.
Vê a prima Sara (Bibi Andersson) a apanhar morangos silvestres para o aniversário do tio Aron (Yngve Nordwall ) e o seu irmão Sigfrid (Per Sjöstrand) a beijá-la, apesar da resistência de Sara que jura fidelidade ao amor declarado a Isak, de quem estaria secretamente noiva.
Mais tarde assiste à confidência que Sara faz à sua irmã Charlotta (Gunnel Lindblom), sobre o incidente:

“- Isak é tão gentil. Ele é fino, honesto e sensível. Quer sempre ler poesias, falar da vida após a morte e gosta de tocar piano. Só tenta beijar-me no escuro e fala do pecado. Ele é muito melhor do que eu. Nem sei como me sinto. Não há perdão para mim. Às vezes sinto-me muito mais velha do que ele. Ele parece um menino, apesar de termos a mesma idade. E Sigfrid é tão perverso e excitante! Quero ir para casa! Não quero passar o Verão a ser ridicularizada por todos.”

Isak finalmente percebe porque razão, estando ambos apaixonados, Sara acabaria por se casar com o seu irmão Sigfrid. Enquanto Isak era honesto, mas reprimido e respeitador dos costumes, Sigfrid era impulsivo, perverso e excitante. A sua frieza e incapacidade para viver a juventude com impetuosidade e paixão, deixando exteriorizar os seus sentimentos e instintos, tinham-lhe custado o amor de Sara, por quem estava verdadeiramente apaixonado.
Ao ser confrontado com a dura verdade revelada confessa que “um sentimento de vazio e tristeza invadiu o meu coração”.


O Olho que se Vê a Si Mesmo

No diálogo de Platão denominado “Alcibíades I”, Sócrates fala de um olho que se quer ver a si mesmo. Para tal deveria olhar para algo que o reflectisse, do mesmo modo que uma alma, se quiser conhecer-se a si mesma, tem de olhar para outra alma semelhante a ela.
Isak irá viver essa experiência com a entrada em cena de três novos personagens: Sara (uma jovem homónima da prima, também interpretada por Bibi Andersson), Anders (Folke Sundquist ) e Victor (Björn Bjelfvenstam).
Os três jovens querem partir para Itália e Sara pede para seguirem viagem no carro de Isak até Lund.
O triângulo da infância está refeito perante o olho de Isak que se vê reflectido nele.
A jovem Sara, livre, ousada e namoradeira, viaja com os dois pretendentes: o sorumbático e religioso Anders e o extrovertido e livre-pensador Victor. Os dois irão formular e confrontar, ao longo da viagem, as suas teorias e propostas de vida opostas, perante os olhos curiosos de Sara e de Isak.
Enquanto espera no carro com Isak que Victor e Anders terminem uma das suas intermináveis discussões, Sara pergunta-lhe:

“- De qual deles gosta mais?
- De qual deles tu gostas mais?
- Não sei. Anders será pastor e é muito carinhoso. Mas ser mulher de pastor? Victor também é bom e irá mais longe.
- Em que sentido?
- Um médico ganha mais dinheiro. Pastores estão fora de moda. Mas ele tem pernas e pescoço bonitos. Como pode acreditar em Deus?”


Ironicamente Isak é médico. Mas acredita em Deus e foi ele o pastor no triângulo formado com a prima Sara e o seu irmão Sigfrid.
Prosseguindo viagem Isak adormece, enquanto chove e Marianne conduz.
“Dormi mas fui atormentado por sonhos e imagens que me pareciam tangíveis e humilhantes. Havia algo muito forte nestas imagens que penetrou na minha mente com determinação.”
No sonho, um Isak humilhado é confrontado pela prima Sara com a sua imagem reflectida num espelho. A humilhação decorre de Isak, mesmo velho e assustado, não aceitar a verdade e recusar ver a sua imagem reflectida no espelho. Isak julgou saber tudo, mas afinal não sabia nada. Perdeu o amor de Sara e ficou apenas com a dor e a humilhação de se ver preterido pelo irmão.


O Casal Alman

Durante a viagem sucede um acidente. Isak quase embate de frente com um Volkswagen que circula em contramão, conduzido por Berit Alman (Gunnel Broström). Logo após o despiste Sten Alman (Gunnar Sjöberg), marido de Berit, pede desculpas pelo sucedido. O casal discutia e Berit ia bater no marido quando perdeu o controlo do carro.
Perante estranhos Sten procura primeiro manter as aparências e inventar desculpas para o comportamento da mulher, esta porém não consegue deixar de recriminá-lo pelo seu egoísmo, vaidade e superficialidade.
O casal segue viagem no carro de Isak com Marianne ao volante. Sten, irónico, acusa Berit de falsidade e histeria. Afirma mesmo que olhá-la é como observar a morte. Berit responde-lhe com novas agressões.
Incomodada Marianne pára o carro e convida-os a sair, desculpando-se com os jovens que assistem à cena no banco de trás. Isak, apesar de silencioso, mostra-se igualmente incomodado pelo episódio.
Mais tarde o casal reaparecerá no sonho de Isak.
Sten leva Isak para um anfiteatro onde conduz um exame, alegadamente às suas competências médicas, perante uma assistência formada por vários alunos, com Sara, Anders e Victor na primeira fila. Porém o médico revela-se incapaz de responder às perguntas. Sten informa Isak que o primeiro dever de um médico é pedir perdão e de que foi acusado de culpa pela sua falecida mulher Karin (Gertrud Fridh). Berit desata a rir histericamente após Isak ter diagnosticado a sua morte.
Sten leva então Isak ao exterior onde o obriga a rever uma cena marcante da sua vida. Um episódio que Isak nunca conseguiu esquecer.
A sua falecida mulher Karin e o amante (Åke Fridell ) cometem adultério. Isak assiste a tudo passivamente. Karin imagina a reacção de Isak:

“Contarei tudo a Isak e já sei o que dirá:
“-Pobrezinha, tenho pena de ti.” - Como se fosse Deus.
Então vou chorar e dizer: “Sentes mesmo pena de mim?”
Ele dirá: “Sinto muita pena de ti”. Eu chorarei e pedirei perdão.
Então dirá: “Não precisas de pedir perdão, não há o que ser perdoado”.
Mas não é o que ele pensa. Ele é um homem frio.
Então ficará carinhoso e eu gritarei que está louco e que a sua demonstração de afecto me dá nojo.
Ele vai querer dar-me algo para dormir e dizer que compreende.
Direi que é tudo culpa dele.
Ele ficará triste e dirá que a culpa é minha. Mas não se importa com nada. É frio como gelo.”


O casal Alman é o espelho do casamento de Isak.
Tal como Sara, também Karin acusa Isak de ser frio como gelo, de viver sem paixão e de esse seu comportamento ser responsável pelo fim do casamento.
Berit parece morta, mas ri histericamente. Karin para não se sentir morta, comete adultério.
Tal como Sara, Isak também perderá Karin. Primeiro para o amante, depois para a morte.
No final da cena Isak pergunta a Sten qual será a pena.
Sten responde: “A de sempre. A solidão.”


Mais Assustadora do Que a Própria Morte

Durante a viagem Isak vai visitar a mãe (Naima Wifstrand), nonagenária, acompanhado por Marianne.
Esta começa por confundir Marianne com Karin, dizendo que não quer falar com a esposa de Isak: “Ela já nos causou muitas dores”. Desfeito o equívoco ainda assim não resiste a acusá-la: “Porque não está com Evald e os seus filhos?” Quando Marianne responde que não têm filhos persiste nas críticas: “Estes jovens de hoje são estranhos. Eu tive dez filhos.”A mãe de Isak mostra-lhes os brinquedos de criança dos seus filhos, enquanto se lamenta:

“- Dez filhos, todos mortos menos tu, Isak.
- Vinte netos. Evald é o único que me visita. Não estou a reclamar. Tenho quinze bisnetos que nunca vi. Mando cartas e presentes para todos nos seus aniversários. Recebo cartas de agradecimento, mas ninguém me visita, a não ser quando querem dinheiro emprestado. Eu devo ser muito cansativa.
- Não diga isso mãe.
- Também tenho outro defeito. Não morro. Todos os descendentes estão à espera e não há modo da herança sair…”


Mais tarde Marianne recordará a cena a Isak, com manifesto incómodo:

“- Quando o vi com a sua mãe senti muito medo.
- Não entendo.
- Eu pensei:
- Esta é a sua mãe, uma velha fria como gelo, de certa forma mais assustadora do que a própria morte;
- Este é o seu filho, e entre eles há uma grande distância. Ele sente-se um morto-vivo. E Evald sente-se no limar do frio e da morte.”


Marianne observa as semelhanças entre as três gerações.
A mãe, Isak e Evald, são frios e distantes, incapazes de manifestarem sentimentos e obcecados com a morte.
Todos acabam por afastar quem quer que se aproxime de si.
Todos parecem condenados à solidão, uma condição mais assustadora do que a própria morte.


A Esperança

A viagem mostra-se reveladora para Isak. Além de experimentar um penoso exercício de auto-conhecimento, descobre ainda que Marianne está grávida e que esse foi o motivo da separação de Evald, incapaz de aceitar a responsabilidade de trazer uma criança ao mundo.
De certo modo compreende-se a posição de Evald quando contemplamos as vidas de Isak e da sua mãe. Pai e filho sentem-se mortos, apesar de vivos.
Para Evald:

“É absurdo trazer uma criança para este mundo e mais absurdo é achar que ela viverá bem. Eu fui um filho indesejado de um casamento infernal. Será que sou filho do meu pai?”
“Não existe certo e errado. Agimos conforme o necessário. Isto é primário. O necessário para ti é viver, existir e procriar. Para mim é morrer, simplesmente morrer.”


Evald é um niilista. Para ele, após a destruição moral tudo cai no vazio. A vida é desprovida de qualquer sentido, reina o absurdo e o niilista não pode ver outra alternativa senão esperar pela morte (ou provocá-la). A circunstância de ter crescido num casamento infeliz, contemplando a destruição progressiva da mãe e o vazio emocional do pai e da avó marcaram-no profundamente. Não quer transmitir esse legado a um filho.
Mas Marianne não é assim. É emotiva e impulsiva e está determinada a ter o filho, apesar da oposição do marido. Refugia-se junto de Isak, esperando que Evald, pela sua ausência, reconsidere.
Também ela reviu o seu casamento no casal Alman mas, como ama Evald, recusa-se a perder a esperança. A terminar como Berit ou Karin.


Recordações

A cerimónia é eloquente. Marianne, Evald e Agda, que não desistiu de Isak e viajou de avião para assistir à cerimónia, assistem orgulhosos na primeira fila à consagração de Isak.
À noite Sara e os rapazes fazem uma serenata de despedida a Isak. Sara diz-lhe que o amará hoje, amanhã e sempre, o que deixa o médico visivelmente sensibilizado.
Isak desculpa-se perante uma Agda surpreendida pela mudança.
Evald e Marianne saem juntos para o baile, aparentemente reconciliados. Evald confessa ao pai que pediu à mulher para ficar consigo, que não pode viver sem ela e que ela fará como entender, quanto ao filho.
Isak agradece a Marianne a companhia durante a viagem e confessa-lhe que gosta muito dela. Sentimento que Marianne retribui.
Isak fica então entregue às suas recordações de infância.
Talvez tentando descobrir, como Marion do filme Another Woman de Woody Allen (um dos dois filmes que Allen escreveu e realizou baseados em Morangos Silvestres – o outro é Deconstructing Harry) se uma recordação é algo que se tem ou algo que se perdeu.
Finalmente em paz.

Sem comentários:

Enviar um comentário