Dead Man (1995)
Realizador: Jim Jarmusch
Com: Johnny Depp, Gary Farmer, Crispin Glover, Lance Henriksen, Michael Wincott, Eugene Byrd, John Hurt, Robert Mitchum, Iggy Pop, Gabriel Byrne, Jared Harris, Mili Avital
“Dead Man” é um filme profundamente negro.
Não apenas devido à belíssima cinematografia a preto e branco de Robby Müller, mas sobretudo pela forma como William Blake (Johnny Depp) vai lentamente descendo até às trevas, antes da libertadora viagem final, como que arrastando tudo e todos consigo.
Uma estranha, mas ainda assim optimista, viagem de comboio de Cleveland para Machine, nos limites da civilização, leva Blake até uma promessa de emprego como contabilista. As personagens lúgubres que com ele partilham a carruagem, durante a viagem, de algum modo funcionam como um prenúncio das desgraças que se adivinham. Uma delas, o fogueiro do comboio (Crispin Glover) até o afirma desafiadoramente: “Isso não explica porque razão veio de tão longe para aqui, para o inferno!” e mais adiante “O mais certo é ir encontrar a sua própria sepultura”.
Machine revela-se tão perturbadoramente lúgubre quanto a viagem de comboio o faria supor. Um misto de Deadwood com a opressiva idade das máquinas de “Modern Times”.
A recusa do emprego prometido na kafkaquiana Metalúrgica Dickinson, dirigida pelo temível John Dickinson (Robert Mitchum) secundado pelo reptiliano John Scholfield (John Hurt), lança Blake nas impiedosas ruas do Oeste Selvagem, onde a simpatia de uma jovem, fabricante de flores de papel (outra referência chapliniana), Thel Russell (Mili Avital), parece ser o único porto de abrigo.
A paixão é mútua mas de curta duração. Após uma fugaz noite de amor Charlie Dickinson (Gabriel Byrne), filho de John e ex-namorado de Thel, irrompe pelo quarto, surpreende o casal e dispara sobre Blake. Num acesso de paixão romântica Thel interpõe-se entre o amante e a bala, morrendo nos braços de Blake. Mas o seu sacrifício não chega para travar a bala que, trespassando o corpo de Thel, se aloja no peito do contabilista. Este riposta com a pistola que Thel escondia atrás da almofada, matando o jovem Dickinson e fugindo com o seu premiado cavalo malhado.
William Blake sobrevive mas é um homem morto. Tem a cabeça a prémio e uma bala alojada junto ao coração.
Foge para o mato onde é socorrido (quase diria adoptado) por um índio (Gary Farmer).
Na verdade também ele é um proscrito. Ostracizado pela sua comunidade e condenado à solidão. É discriminado por índios e por brancos (até um missionário cristão (Alfred Molina), que lucrativamente se dedica ao comércio com os índios, se recusa a vender-lhe um simples pedaço de tabaco). Por isso gosta que lhe chamem “Ninguém”.
“Ninguém” foi levado à força através do oceano até Inglaterra, onde aprendeu a ler e se apaixonou pelos poemas libertadores de William Blake, o poeta inglês já morto e homónimo do jovem contabilista.
Esta coincidência e a empatia que gera, além da coincidente condição de proscritos que partilham, faz nascer uma estranha amizade entre os dois personagens. Um Blake que vacila, debilitado, mas que encarna o anti-autoritarismo do poeta inglês, e um “Ninguém” determinado a ajudá-lo a viver, como símbolo da revolta que sente contra o ostracismo de que foi vítima, apesar de Blake já estar duplamente morto (morto o poeta inglês, ressuscitado por “Ninguém”, e morto o contabilista pela bala de Dickinson que “Ninguém” não consegue extrair).
O filme prossegue numa sucessão crescente de paradoxos, acentuados pelo dramatismo dos acordes da guitarra de Neil Young.
O jovem contabilista, quase morto, torna-se o mais temido foragido da região, cuja lista de vítimas aumenta de dia para dia (entre reais e falsamente atribuídas). Apesar de morto, sobrevive a Thel e ao seu assassino, às suas muitas vítimas, aos pistoleiros contratados por Dickinson, aos xerifes e caçadores de prémios que vão no seu encalço, sobrevive até ao seu protector “Ninguém” que sacrifica a sua vida para defender o pouco que resta da de Blake, na sua última e simbólica viagem.
Uma viagem libertadora rumo ao grande mar e à terra onde viveu o poeta William Blake.
Uma vitória simbólica da liberdade contra a tirania.
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