terça-feira, 19 de janeiro de 2010

À Espera do Castigo de Deus


Gomorra (2008)

Realizador: Matteo Garrone
Com: Tony Servillo, Gianfelice Imparato, Maria Nazionale, Salvatore Cantalupo, Gigio Morra, Salvatore Abruzzese, Marco Macor, Ciro Petrone, Carmine Paternoster,
Gomorra é um filme brutal.

Mais do que a violência, a corrupção, as profundas ligações da máfia napolitana aos meandros do poder, o filme impressionou-me pela vida quotidiana naqueles bairros sociais dos subúrbios de Nápoles, autênticas favelas desenhadas a régua e esquadro, governadas por barões da droga e onde as esporádicas rusgas policiais, quais raids cirúrgicos e ultra sónicos, parecem causar efeito semelhante ao de um mosquito numa manada de elefantes.
De imediato vem à lembrança a Cidade de Deus de Fernando Meirelles e o modo como a violência condiciona indelevelmente a vida de todos quantos nascem e crescem nestas Gomorras que permanecem imunes ao castigo de Deus. E dos homens.
Impressiona como Totó (Salvatore Abruzzese), um jovem adolescente de 13 anos de idade, completa em poucas semanas a metamorfose de um inocente paquete da mercearia do bairro, que agradece orgulhosa e respeitosamente cada pequena gorjeta que recebe nas suas lides, para um operacional brutal e sem escrúpulos ao serviço de um gang de narcotraficantes, capaz de trair as pessoas que com ele conviveram desde que nasceu, apenas por fidelidade ao gang e ao seu desejo de integração (uma evidência dos mecanismos de integração social acrítica do indivíduo, tão bem criticados por Woody Allen em Zelig).
Impressiona ainda como Marco e Ciro (Marco Macor e Ciro Petrone) dois adolescentes pouco mais velhos que Totó, atingiram já um estado tal de alienação que perderam o medo. Imitam a violência gratuita de Scarface no ecran e acreditam que vão tornar-se os mais temidos gangsters da região, apenas porque conseguiram dar um ou dois golpes bem sucedidos e tomar posse de um grande número de armas escondidas por um dos bandos mafiosos.
Aqui não há lugar para heróis. Esta é uma sociedade em que apenas os cobardes chegam a velhos.
Como Dom Ciro (Gianfelice Imparato) que sobrevive como correio dos traficantes, entregando dinheiro aos familiares dos membros do clã presos, em troca do seu silêncio. Cada dia é uma luta pela sobrevivência que Dom Ciro assegura traindo os mais fracos e juntando-se aos mais fortes.
Ou como Pasquale (Salvatore Cantalupo) exímio costureiro cujas obras impressionam até estrelas de cinema como Scarlett Johansson, mas que se resigna a viver, incógnito e mal pago, sob o jugo da Camorra, sabendo que a sua vida depende disso.
Mesmo os mais promissores filhos da terra, como Roberto (Carmine Paternoster) ou se ajustam ao sistema sem escrúpulos dominado pelo crime organizado ou “vão fazer pizzas”, nas irónicas palavras de despedida de Franco (Toni Servillo), o seu patrão e mentor no criminoso negócio dos lixos tóxicos.
Desenganem-se pois aqueles que acreditam que as imagens impressionantes de Cidade de Deus são próprias das injustas sociedades em vias de desenvolvimento da América do Sul ou de outros cantos desfavorecidos do globo. Esta Gomorra floresce no seio dos parentes ricos da família europeia e nem sequer parece particularmente influenciada por fenómenos de migração que tanto assustam alguns e exaltam a xenofobia de outros.
Na verdade as comunidades migrantes (no caso a africana e a chinesa) apenas surgem no filme como vítimas da mão brutal da máfia napolitana ou de jovens freelancers inebriados pela febre de poder transmitida pela violência gratuita e impune e pelos filmes de Hollywood.
Baseado no livro do jornalista Roberto Saviano, Gomorra exalta o cinema interventivo, documental, jornalístico. Uma obra que visa denunciar, incomodar e desse modo agir como catalisador da mudança.
Uma ficção demasiado próxima da realidade.

PS - Uma notícia no jornal Expresso de 6 de Janeiro de 2010 dá conta que três dos actores de Gomorra (Salvatore Fabbricino, Bernardino Terracciano e Giovanni Venosa) foram recentemente condenados a penas de prisão pelos crimes de extorsão e tráfico de droga. Uma notícia que abona o realismo da obra de Matteo Garrone e da frase com que finalizei a presente nota.


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