Realizador: James Mangold Com: Russell Crowe, Christian Bale, Logan Lerman, Dallas Roberts, Ben Foster, Peter Fonda, Vinessa Shaw, Alan Tudyk, Luce Rains, Gretchen Mol, Lennie Loftin, Rio Alexander
3:10 to Yuma (1957)
Realizador: Delmer Daves Com: Glenn Ford, Van Heflin, Felicia Farr, Leora Dana, Henry Jones, Richard Jaeckel, Robert Emhardt, Sheridan Comerate, George Mitchell, Robert Ellenstein, Ford Rainey
Confesso que sou um apreciador do western. Um género que caiu em desuso há muito e que, de tempos a tempos, reaparece solitariamente nos ecrãs, fruto da teimosia de alguns saudosistas para satisfação de outros, como eu. Geralmente em boas produções que lhe fazem justiça. Cinquenta anos depois James Mangold refez um clássico de Delmer Daves, escrito por Halsted Welles a partir de um conto da autoria de Elmore Leonard. O argumento do novo filme contou ainda com algumas revisões da autoria de Michael Brandt e de Derek Haas. E o argumento é, sem dúvida, o prato forte desta obra, que inspiraria (juntamente com High Noon, realizado por Fred Zinnemann em 1952) Howard Hawks a realizar o famoso Rio Bravo em 1959. Os anos 50 trouxeram uma nova dimensão ao western, uma consciência social. 3:10 to Yuma é claramente um dos bons exemplos de um western maduro a que o argumento de Welles empresta ainda uma tensão psicológica que o aproxima do thriller. Por isso, ao vermos o clássico de 1957, parece-me forçoso concluir que este remake era de todo desnecessário. A obra original mantém todo o seu interesse, na excelente cinematografia a preto e branco de Charles Lawton Jr., na realização competente de Daves e nos excelentes desempenhos dos dois protagonistas, Glenn Ford e Van Heflin, além, claro está, do belíssimo argumento. Felizmente, apesar de desnecessário, o filme de Mangold não resulta num mero pretexto para levar aos cinemas as fãs de Russell Crowe. Embora algumas das alterações ao argumento, sobretudo o final, possam ser polémicas, penso que quem assistir ao filme não dará o seu tempo por perdido, e assistirá, ainda assim, a um bom western, competentemente dirigido e bem interpretado pela dupla Russell Crowe e Christian Bale, contando com bons valores de produção. Ainda que nada acrescente de relevante à obra original. Ben Wade (Glenn Ford, Russell Crowe) é um notório assaltante de diligências que aterroriza, com o seu bando, as cidades do árido Arizona. Após um assalto deixa-se reter por uma velha paixão na cidade de Bisbee o que permitirá a sua captura. Torna-se contudo necessário levá-lo até à prisão estadual de Yuma, mas todos temem a reacção do bando, que tudo fará para libertar o seu chefe. Dan Evans (Van Heflin, Christian Bale) é um modesto fazendeiro de Bisbee a braços com dificuldades económicas decorrentes da seca, que não consegue resolver. Quando Mr. Butterfield (Robert Emhardt, Dallas Roberts), dono da companhia de diligências (no remake de Mangold, Butterfield é dono de uma companhia ferroviária que ameaça as terras de Evans e a diligência assaltada, o seu carro de transporte de valores), oferece uma choruda recompensa para quem o queira acompanhar na escolta do prisioneiro até Contention, local onde será enviado no comboio das 3:10h para Yuma, Evans vê a sua derradeira oportunidade para salvar a quinta e a família da miséria, e aceita. Inicia-se então um intenso drama psicológico que opõe Wade, um ladrão que vai adquirindo respeito pela dignidade e ética do fazendeiro, e Evans, o homem sério que vê a sua coragem e honestidade serem colocadas permanentemente à prova pelos constantes aliciamentos de Wade e pelo terror incutido pelo seu bando. A presença da família de Evans ajuda a construir o perfil psicológico dos dois personagens. Por um lado o foragido galante e conhecedor do mundo, que consegue atrair com o seu charme a mulher de Evans (Leora, Dana, Gretchen Mol) e com a sua coragem os filhos do casal (Barry Curtis e Jerry Hartleben, Logan Lerman e Benjamin Petry) e que, de certo modo, inveja a vida familiar do fazendeiro, vedada pela opção que tomou pelo crime. Por outro o pacato agricultor que quer mostrar à mulher e aos filhos, e sobretudo a si mesmo, que também ele é um homem de coragem e de valor, apesar da vida miserável que leva e que proporciona à sua família. Um misto de inveja e de despeito, além da necessidade do dinheiro, levam-no a aceitar a ingrata tarefa. Esta permanente oposição de valores conduz contudo a que ambos dediquem ao outro um respeito que se vai intensificando até final, à medida que, pelo contacto permanente, melhor se conhecem. E no fundo a história revolve à volta disso mesmo, dos valores que ambos acalentam, apesar de todas as vicissitudes (o crime, a pobreza, o facto de se encontrarem em lados opostos da lei). Aí reside a essência da condição humana e por isso ambos vêem crescer um sentido de respeito, de dignidade, um pelo outro, apesar de se encontrarem no lado oposto das armas. O esperado duelo final, em que o bando de Wade finalmente defronta o guardião do seu chefe, aparece assim como um confronto contra-natura, simultaneamente aguardado e indesejado pelos dois protagonistas. Wade compreende que a derrota de Evans será de algum modo também a derrota de um homem honrado e dos princípios em que acredita. Evans por seu turno precisa de entregar aquele homem, por quem desenvolveu respeito e amizade, não só para salvar a sua quinta mantendo íntegra a sua honra, mas também para reconquistar o respeito por si próprio, atenta a vida dura que tem imposto à sua família. Nesse sentido parece-me irrelevante a alteração perpetrada no final do filme, no remake de 2007. O essencial da obra está precisamente na construção desse respeito mútuo que leva à entre ajuda dos protagonistas, no duelo final rumo ao comboio para Yuma. Em ambos Evans consegue os seus objectivos com a colaboração de Wade. Em ambos Evans ganha o respeito de todos e recupera o seu amor-próprio.
Realizador: Joel Coen Com: George Clooney, Catherine Zeta-Jones, Geoffrey Rush, Cedric the Entertainer, Edward Herrmann, Paul Adelstein, Richard Jenkins, Billy Bob Thornton, Julia Duffy, Jonathan Hadary
Intolerable Cruelty é uma comédia aparentemente ligeira que esconde uma visão profundamente cínica do casamento e do sistema judicial norte-americano. À visão romântica do casamento, tantas vezes veiculada por Hollywood nas comédias românticas que serviram de inspiração à presente película, os irmãos Coen, com a sua habitual ironia e humor negro, contrapõem-nos uma visão puramente mercantilista, que não deixa de constituir uma perspectiva bem real do casamento nos tempos que correm. E será que alguma vez assim não foi? O casamento por amor é uma invenção do romantismo já que, até então, os aspectos patrimoniais sempre constituíram o principal móbil do matrimónio nas diferentes sociedades. O casamento é historicamente um contrato, que visa, muito mais do que legitimar relações amorosas ou a descendência dele resultante, titular negócios de natureza patrimonial. Ao retirarem aos progenitores a iniciativa contratual no que respeita ao casamento, os legisladores românticos não alteraram a natureza essencialmente patrimonial do instituto. Limitaram-se a transferir a capacidade contratual dos progenitores para os nubentes. Quem, como eu, vive o quotidiano dos Tribunais e das disputas litigiosas, designadamente as emergentes da dissolução do vínculo conjugal, sabe que a postura cínica de Miles (George Clooney) e Marylin (Catherine Zeta-Jones) face ao casamento é tudo menos infundada. Como diria Woody Allen, love fades. Depois resta apenas uma vontade irresistível de fazer sangue. Os Tribunais estão cheios de ex-casais apaixonados em disputas intermináveis de natureza patrimonial. Quando o amor acaba luta-se com unhas e dentes por tudo o que estiver ao alcance. Desde a valiosa moradia de férias até ao jogo de toalhas de casa de banho. Sem exagero. E podemos mesmo afirmar que a sociedade em que vivemos e o sistema judicial que a serve, não só permite como até incentiva estes comportamentos. Vivemos dias de profundo materialismo, em que o acesso ao conforto e aos prazeres de uma vida burguesa se assumem como valor supremo, claramente acima de quaisquer recompensas de índole espiritual. Quando o amor acaba há que garantir o conforto material futuro. É a compensação pelo tempo investido na relação, agora aparentemente perdido, e simultaneamente o castigo para quem dele usufruiu, imerecidamente. Se não souber como fazê-lo, há quem prontamente se disponha a ajudar. E esse é outro aspecto pertinente do filme. A denúncia de uma sociedade que soube construir toda uma economia à volta do fim do casamento. Desde as poderosas sociedades de advogados que ganham fortunas com os divórcios, até aos investigadores privados brilhantemente caricaturados pelo personagem Gus Petch (Cedric the Entertainer). Até o Estado, a pretexto do cumprimento das funções administrativa e judicial, não abdica do seu generoso quinhão, expresso em taxas cobradas pelos diversos serviços a quem é necessário recorrer para instruir os processos e bem assim em impostos cobrados sobre as transmissões patrimoniais decorrentes da partilha. Parece-me assim que a visão que a sociedade contemporânea espelha do casamento consegue ser ainda mais cínica do que a expressa neste filme. Sob a aparência de uma comédia romântica inspirada na eterna luta de sexos, imortalizada no grande ecrã por Cary Grant e Katherine Hepburn, os irmãos Coen apresentam-nos a imagem reflectida da nossa sociedade doente, cínica e materialista. Não admira pois que até a televisão comercial se interesse por este gigantesco mercado matrimonial, através dos reality shows. No adequado vernáculo de Gus Petch, vale tudo “To Nail His Ass”! Or hers…
Realizador: Ari Folman Com: Ari Folman, Miki Leon, Ori Sivan, Yehezkel Lazarov, Ronny Dayag, Shmuel Frenkel, Zahava Solomon, Ron Ben-Yishai, Dror Harazi
Nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 1982, milícias falangistas, fiéis ao presidente libanês Bashir Gemayel, assassinado dois dias antes num ataque bombista que vitimou igualmente vinte e seis outros membros do seu partido, vingaram a morte do líder massacrando milhares de palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, sobretudo idosos, mulheres e crianças, sob o olhar complacente dos soldados israelitas que ocupavam Beirute Ocidental. Ari Folman era um dos soldados israelitas colocados nas imediações dos campos. Waltz With Bashir é assim um filme na primeira pessoa. Uma viagem através da memória pessoal de Folman, em busca das recordações desses dias terríveis, através de entrevistas sucessivas com camaradas que com ele estiveram no Líbano e testemunhas do conflito. Os horrores da guerra e dos massacres são apresentados num filme de animação, terrivelmente belo, num onírismo deliberado que pretende precisamente evocar a progressiva reconstituição da memória pessoal e colectiva acerca do conflito. Folman optou por um estilo que faz lembrar os comics norte-americanos, mas ao juntar-lhe a cor, quase sempre em tons escuros e sombrios, acentua significativamente o dramatismo da obra. É contudo notória uma progressiva transição da paleta para cores mais claras, à medida que o filme se aproxima do fim. A mudança simboliza a progressiva reconstituição da memória do autor, culminando mesmo em filmagens reais dos cadáveres das vítimas dos massacres, empilhados nos campos, e das manifestações de pesar dos seus familiares, no final do filme. Como se das trevas se fizesse luz perante uma verdade finalmente revelada. Embora a obra não seja assumidamente política, é antes de mais um testemunho da experiência pessoal do autor e um manifesto pacifista, não deixa por isso de apontar responsabilidades aos comandantes israelitas e a Ariel Sharon, ao tempo Ministro da Defesa de Israel. Apesar de as tropas israelitas não terem cometido directamente os massacres, tiveram conhecimento deles e nada fizeram para os evitar. O filme acusa mesmo Sharon de ter deliberadamente ignorado as informações que lhe foram transmitidas sobre os massacres, facto aliás concluído igualmente pela Comissão Kahan designada pelo governo israelita para investigar os crimes. As chefias militares terão passivamente permitido que os massacres fossem praticados diante dos seus soldados sem tomarem qualquer iniciativa para os evitar. Nesse sentido Folman chama claramente a atenção para o paradoxo que constitui o facto de os filhos das vítimas de Auschwitz terem servido de cúmplices de crimes similares. É igualmente interessante que, no início do filme, quer o autor quer os seus camaradas de armas entrevistados, sofram todos de uma estranha amnésia que os impede de recordar os factos ocorridos durante a guerra do Líbano. É legítimo inferir que tal amnésia, mais do evocar traumas de guerra, seja uma acusação directa ao povo israelita e à comunidade internacional, por ter permitido que Sharon, apesar de pessoalmente responsabilizado pelo envolvimento nos massacres, continuasse a integrar o executivo israelita. Na verdade apesar de se ter demitido do cargo de Ministro da Defesa em 1982, na sequência das conclusões da Comissão de investigação aos massacres, continuou no Governo como Ministro sem pasta e ocupou mesmo, entre 2001 e 2006, o cargo de Primeiro-Ministro de Israel. A recuperação da memória colectiva é assim também um dos objectivos claros do filme. Mais do que exorcizar fantasmas do passado, Folman pretendeu construir uma obra que mostre a irracionalidade da guerra. Um testemunho na primeira pessoa para as gerações mais novas de que a guerra nada tem de digno ou de heróico. Apenas drama e degradação.
Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) é violoncelista numa orquestra de Tóquio. Apesar da qualidade do trabalho desenvolvido o público não comparece aos concertos, o que leva à dissolução da orquestra e ao desemprego de Daigo. É confrangedora a cena em que assistimos à interpretação da nona sinfonia de Beethoven, com toda a pompa e eloquência que a obra exige, com mais de uma centena de músicos e cantores em palco, para uma plateia quase vazia. A dissolução da orquestra leva Daigo a reconsiderar a sua vida. Será que fez uma boa opção enveredando pela carreira de músico profissional? Será que possui o talento e a perseverança necessários para prosseguir nesse caminho? Incapaz de continuar a pagar as prestações do seu dispendioso violoncelo decide vendê-lo e regressar, com a sua jovem mulher Mika (Ryoko Hirosue), para Yamagata, a pequena cidade do interior onde nasceu e onde a mãe, recentemente falecida, lhe deixou uma casa. O regresso a Yamagata é, desde logo, um confronto com a morte da mãe e com as recordações de infância. Daigo não esteve presente no funeral da mãe porque se encontrava no estrangeiro e não conseguiu regressar a tempo de assistir à cerimónia, facto que, de algum modo, se recrimina. O pai deixou-os quando era ainda uma criança, o que Daigo nunca lhe perdoou. Não sabemos o que a mãe pensava sobre o assunto, mas Mika observa que ainda devia amar o marido, porque guardou religiosamente a sua colecção de discos. Foi o amor do pai pela música que levou Daigo a aprender violoncelo. Instalados na casa materna em Yamagata torna-se necessário assegurar a subsistência, pelo que Daigo responde a um anúncio do jornal, para o que julgava ser um emprego numa agência de viagens. Sucede porém que as viagens em questão eram para mais longe do que Daigo supunha… A agência NK é na verdade uma empresa de Nokanshi, o cerimonial fúnebre japonês de preparação dos cadáveres para o funeral e a cremação. O confronto quotidiano com a morte assusta-o. De igual modo a aceitação social da profissão está longe de ser consensual. Muitos olham-no com desprezo, incluindo a mulher, quando finalmente descobre qual a nova profissão do marido. Ao contemplar os salmões que sobem as águas revoltas do rio apenas para irem morrer no local onde nasceram, Daigo sente-se como eles, de regresso à sua terra natal para viver diariamente o drama da morte dos outros, até chegar a sua vez de partir. Mas, estranhamente, o violoncelista afeiçoa-se ao seu novo trabalho. Ao ver trabalhar o seu mestre Ikuei Sasaki (Tsutomu Yamazaki) e ao contactar com os familiares agradecidos dos defuntos, Daigo apercebe-se da beleza, da arte e da humanidade da profissão. Dedica-se-lhe de alma e coração tornando-se um excelente profissional. A mulher não compreende essa opção e pede-lhe para deixar aquele trabalho indigno. Como Daigo recusa, ela deixa-o e muda-se para casa dos pais. Quando finalmente regressa, informa-o que está grávida, esperando que o nascimento do filho o resolva a abandonar tão estranha profissão. É quando a morte de uma amiga comum, Tsuyako Yamashita (Kazuko Yoshiyuki), a perseverante dona da casa de banhos local, lhe permite assistir aos preparativos da defunta protagonizados pelo marido. A sensibilidade e carinho com que Daigo leva a cabo a tarefa convencem-na de que, afinal, estava errada, e de que a profissão escolhida pelo marido é de enorme dignidade. Daigo irá ainda ser confrontado com um encontro singular com a morte, quando recebe a notícia do falecimento do pai, desaparecido há 30 anos. Relutantemente decide-se a comparecer no funeral onde acabará por experimentar na pele os efeitos da sua nova arte. Uma obra muito bela e de uma enorme sensibilidade. Nunca a morte foi filmada de modo tão tranquilo e poético como neste Okuribito de Yôjirô Takita. Verdadeiramente, um filme que não se esquece.
Realizador: Ethan & Joel Coen Com: George Clooney, Frances McDormand, Brad Pitt, John Malkovich, Tilda Swinton, Richard Jenkins, Elizabeth Marvel, David Rasche, J. K. Simmons, Olek Krupa, Michael Countryman
Mesmo quando a imaginação falte em Hollywood e o público delire com a versão 3D da última sequela do remake de um filme de sucesso da década de 60, podemos sempre contar com os irmãos Coen para nos proporcionarem deliciosos momentos de ironia sobre o cinema e a sociedade norte-americana contemporâneos. O thriller de espionagem tem um lugar de destaque na história do cinema. O fim da Segunda Guerra Mundial e o início do período a que se convencionou chamar de Guerra Fria, alimentou a imaginação de autores e público, surgindo variadíssimas obras dedicadas às vidas conturbadas de espiões do lado de cá e de lá da cortina de ferro. Mas tudo isso passou à história. Hoje não há cortina de ferro e russos e americanos vivem numa lua-de-mel de conveniências mútuas. Ainda haverá público para um filme de espionagem que não seja um mero pretexto para coreografar uma mão-cheia de cenas de pancadaria e violência gratuita? Com Burn After Reading, os irmãos Coen provam-nos que sim, desde que tenhamos sido abençoados com um sentido de humor. Osbourne Cox (John Malkovich) é um analista da CIA que abusa do álcool. É um modesto funcionário mediano sem acesso a informações importantes. Ainda assim a bebida começa a influenciar o seu trabalho e o superior responsável, o oficial Palmer (David Rasche), um nome que evoca Harry Palmer e os romances de Len Deighton, retira-o do departamento e propõe-lhe um lugar menos atractivo. Cox, despeitado, prefere bater com a porta e dedicar-se a escrever as suas memórias. Não que tenha alguma coisa de importante a contar. Quando informa a mulher, a pediatra Katie (Tilda Swinton), do desejo de escrever as suas memórias, ela limita-se a rir, sarcasticamente. Mas Cox está determinado a contar os seus “segredos”, apesar de confessar ao pai incapacitado, também ele um funcionário público reformado: “Trabalhar no governo não é o mesmo de quando o pai trabalhava no Departamento de Estado. As coisas agora são diferentes. Não sei, talvez seja pelo fim da Guerra Fria. Agora parece que é tudo burocracia e nenhuma missão.” Sucede que Katie mantém um caso amoroso com Harry Pfarrer (George Clooney), um funcionário do Departamento do Tesouro, por sua vez casado com Sandy (Elizabeth Marvel), uma escritora de contos infantis. O desemprego do marido fornece-lhe o pretexto que faltava para avançar com o divórcio. A conselho do seu advogado sem escrúpulos (J. R. Horne), resolve recolher informações sobre o marido, com vista a uma futura partilha, entre as quais uma cópia das suas memórias. O CD contendo estas informações é deixado inadvertidamente por uma funcionária do advogado (Judy Frank) no ginásio. Começa então uma trama digna de Hitchcock. Manolo (Raul Aranas), um modesto funcionário do ginásio, descobre o CD e mostra-o a Chad Feldheimer (Brad Pitt), um instrutor de ideias muito curtas. Este por sua vez mostra-o a outra colega, Linda Litzke (Frances McDormand), e ao responsável pelo ginásio, Ted Treffon (Richard Jenkins). Linda andava obcecada com a ideia de efectuar uma operação estética para a qual não tinha dinheiro, pelo que resolve associar-se a Chad e chantagear Cox, para a devolução do CD. Como este não quer pagar, o duo de chantagistas dirige-se à embaixada russa com vista à venda dos “importantes” segredos de Estado. Entretanto Linda inicia um relacionamento com Harry, desconhecendo obviamente a sua ligação a Katie. A CIA, alertada por um contacto na Embaixada russa, vai seguindo atentamente a teia, sem perceber muito bem o que fazer com ela, já que as informações incluídas nas memórias de Cox, nada valem. O resultado de toda esta embrulhada é hilariante, no estilo de humor negro a que os irmãos Coen nos habituaram, e envolve mortes, comas, detectives privados, perseguições, fugas para a Venezuela e uma operação plástica paga pela CIA. No entretanto assistimos à decadência da sociedade norte-americana contemporânea, em que valores como o amor, o casamento, o patriotismo, a ética profissional e a amizade nada valem. Tudo se faz para financiar uma lipo-aspiração…
Realizador: Michael Haneke Com: Daniel Auteuil, Juliette Binoche, Maurice Bénichou, Annie Girardot, Bernard Le Coq, Walid Afkir, Lester Makedonsky, Daniel Duval, Nathalie Richard, Denis Podalydès, Aïssa Maïga
Haneke continua a explorar o lado negro da personalidade humana e, paralelamente, das sociedades francesa e ocidental as quais, sob uma capa de aparente democracia e tolerância, mantêm latentes profundos sentimentos de ódio e de racismo. Georges Laurent (Daniel Auteuil) é um crítico literário de sucesso com um programa na televisão pública onde fomenta o debate e o confronto de ideias. Mas sob esse aparente universalismo, Laurent esconde um segredo de ódio e intolerância. Laurent descende de uma rica família agrária. Um casal argelino, empregados dos pais, foi assassinado durante o massacre de 17 de Outubro de 1961, em que centenas de argelinos foram mortos pela polícia comandada por Maurice Papon, prefeito de Paris e antigo membro do regime de Vichy, e os seus corpos lançados ao Sena. Deixaram uma criança órfã, Majid (Malik Nait Djoudi), ao cuidado dos pais de Georges. Sensibilizados com o crime e preocupados com o futuro da criança os pais de Georges decidem adoptá-lo. Mas os ciúmes doentios do jovem Georges (Hugo Flamigni) levam-no a inventar doenças e instintos violentos de que a acusa Majid aos pais. Estes acabam por decidir enviá-lo para um orfanato. Este incidente determinaria a vida das duas crianças. Georges cresce rico, rodeado dos cuidados e carinhos dos pais e destinado a uma vida de sucesso. Majid (Maurice Bénichou) cresce no orfanato, onde ensinam o ódio. É-lhe negada a educação, ficando assim destinado a uma vida de pobreza e dificuldades. Georges e os pais esquecem o incidente, não lhe dedicando grande importância. Majid, pelo contrário, ao ver o programa de Georges na televisão, é confrontado semanalmente com a vida que poderia ter tido, mas que lhe foi negada pelo ódio deste. Georges vive com a mulher Anne (Juliette Binoche) e o filho Pierrot (Lester Makedonsky) numa casa dos subúrbios de Paris. A família começa a receber cassetes anónimas com filmes da sua casa sob vigilância e desenhos perturbantes (mais tarde saberemos que os desenhos evocam episódios da infância de Georges e Majid). O medo apodera-se do casal Laurent. Os vídeos seguintes mostram a casa da infância de Georges e Majid e uma rua, um corredor e uma porta desconhecidos, que Georges descobre serem da casa do argelino. O reencontro dos dois revela um Georges sem remorsos e um Majid conformado com a sua sorte, que nega ser o autor das cassetes. Mas Georges não acredita. Continua a usar Majid como bode expiatório dos seus pecados. Quando o filho Pierrot desaparece (mais tarde saberemos que a criança ficou em casa de um colega e não quis avisar os pais) acusa Majid de rapto, levando a polícia a sua casa e provocando a detenção deste e do seu filho (Walid Afkir). O reencontro acaba por se revelar fatal para Majid. Consumido pela injustiça e pela falta de remorso de Georges, suicida-se à frente do “irmão”, num grito final de revolta que Georges se recusa a compreender. Caché é um filme incómodo em que os esqueletos no armário de Georges são também os da França e da sociedade ocidental (expressos nas imagens da guerra no Médio Oriente que passam na televisão, sem que ninguém lhes ligue importância). Paris, capital assumida da democracia e da tolerância, foi o palco do massacre de 1961 que arrumou, esquecido, nos arquivos da sua memória colectiva. O luxo da burguesia “europeia” contrasta com a pobreza e a marginalidade das comunidades emigrantes, designadamente a argelina. Estas continuam a servir de bode expiatório para todos os problemas, nomeadamente no discurso dos sectores mais reaccionários da sociedade francesa. Mas há uma nova geração bem diferente de Majid. O ciclista negro (Diouc Koma) que quase atropela Georges à saída da esquadra de polícia responde-lhe com firmeza aos insultos. O filho de Majid não partilha do conformismo do pai. Ele enfrenta Georges no seu emprego acusando-o de ser um homem sem consciência. Enquanto o pai cresceu num orfanato, onde ensinam o ódio, mas viveu e educou o filho na tolerância, Georges cresceu com amor e riqueza, mas continua intolerante e racista. O episódio do desaparecimento de Pierrot é também revelador de que o filho do casal Laurent começa a desenvolver sentimentos de revolta. No final vemos, com o mesmo distanciamento e frieza demonstrados por Georges e pela sociedade francesa, o dramático episódio da ida de Majid para o orfanato. Vemos ainda as crianças que saem da escola de Pierrot, no bulício natural da juventude. Um convite à reflexão. Sobre a maldade do homem, que se manifesta mesmo em criança, e sobre a esperança que ainda poderemos manter quanto às gerações futuras. Repetirão elas os erros do presente e do passado?
Realizador: Ingmar Bergman Com: Victor Sjöström, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindahl, Folke Sundquist, Björn Bjelfvenstam, Naiam Wifstrand, Gunnel Broström, Gertrud Fridh
Conhece-te a ti mesmo
Seguindo a máxima socrática inscrita, há 2500 anos atrás, nas paredes do templo de Apolo, em Delfos, Ingmar Bergman impõe ao protagonista de Smultronstallet, o eminente médico e investigador Dr. Isak Borg (Victor Sjöström) de 78 anos de idade, uma viagem de Estocolmo até Lund, onde irá receber um prémio honorário pelos 50 anos de carreira atribuído pela Universidade, que é, simultaneamente, uma viagem de auto-conhecimento, de profunda reflexão e balanço sobre a sua vida. Isak Borg é um solitário. Ele confessa-o logo no monólogo inicial do filme “A nossa relação com as pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las. Foi isso que me afastou, por vontade própria, de toda a minha vida social. Mas tornou a minha velhice solitária. Sempre trabalhei muito, e estou grato por isso. Comecei a trabalhar para sobreviver e acabei amando a ciência.” Isak assume a sua misantropia. O relacionamento com as pessoas é difícil, conduz a frequentes críticas e discussões. Por isso se isolou e dedicou exclusivamente ao trabalho. Mas agora, chegada a velhice, sente-se só. O diálogo com a empregada Agda (Jullan Kindahl) reflecte o paradoxo da vida de Isak. Ele assume que tem a sorte de ter uma boa empregada, mas mostra-se intransigente, incapaz de aceitar as suas opiniões, ingrato mesmo para quem há tanto tempo (sabemos que a mulher morreu há 30 anos) o acompanha e lhe dá apoio. “Não se esqueça de que não somos casados”, afirma no remate da discussão, “Todas as noites dou graças a Deus por isso”, replica-lhe Agda. E mais adiante “Não me vou esquecer como são os velhos egoístas, que só pensam em si mesmo e se esquecem de quem os serviu lealmente durante 40 anos”. Durante a noite que precede a viagem, Isak tem um sonho estranho. Numa rua deserta de uma parte desconhecida da cidade vê um relógio sem ponteiros, um homem desfigurado que se desfaz e um funeral, que descobre ser o seu. O cadáver ganha vida, perante o horror de Isak, estende-lhe a mão e suplica silenciosamente ajuda. O sonho é uma mensagem onírica (vinda do seu subconsciente) de que é chegada a hora de fazer um balanço da sua vida, que a imagem que tem de si mesmo é desfigurada, que a morte inevitável está a aproximar-se rapidamente e que ainda está a tempo de redimir-se. O sonho deixa marcas no protagonista que, de manhã, decide viajar para Lund de carro e não de avião. Uma viagem que será simultaneamente um caminho para o auto-conhecimento.
A Viagem
Marianne (Ingrid Thulin), a nora de Isak, acompanha-o na viagem de carro até Lund. Será o primeiro espelho através do qual Isak verá reflectida a sua imagem desfigurada. As confissões, por vezes duras, sucedem-se, levando Isak a reconsiderar a imagem que possuía de si mesmo. Após recriminar Marianne pelo hábito de fumar e de tecer algumas considerações sexistas sobre os vícios do homem e da mulher, sucede o seguinte diálogo:
“- O que tem contra mim? - Quer uma resposta sincera? - Quero. - É um velho egoísta. Não tem consideração por ninguém e só se ouve a si mesmo. Mas esconde bem isso atrás da sua civilidade e charme. Mas é egoísta. Apesar de lhe chamarem um benemérito, quem convive consigo sabe como é na realidade. Não nos engana. Lembra-se do que disse quando eu me mudei? Achei que nos ajudaria e pedi para ficar em sua casa. Lembra-se do que disse então? - Sim, disse que era bem-vinda. - Deve ter-se esquecido, mas disse ”Não tente envolver-me nos seus problemas conjugais, cada um resolve os seus problemas”. - Eu disse isso? - E não foi só isto? - A sério? - Foram estas as suas palavras: “Não respeito o sofrimento psicológico, por isso não se lamente. Se precisar de ajuda posso arranjar-lhe um psicanalista. Ou um padre, está em voga.” - Eu disse isso? - Tem opiniões categóricas. Detestaria depender de si.”
Marianne põe a nu o carácter frio e egoísta de Isak, que se contrapõe à emotividade e impulsividade dela. Ficamos igualmente a saber que Evald (Gunnar Björnstrand), o filho de Isak e marido de Marianne, também médico e residente em Lund, é parecido com o pai. Facilmente se intuem os motivos porque está separado de Marianne. O consenso dos interlocutores acerca das suas semelhanças com o pai não deixa margem para dúvidas: ambos têm os seus princípios, nas palavras eufemísticas de Isak. Mas Marianne consegue surpreender Isak ao afirmar que ainda assim gosta de si, que tem pena dele e sobretudo, que o filho, apesar de o respeitar, o odeia.
Morangos Silvestres
Incomodado pelas palavras incisivas de Marianne, Isak decide parar e mostrar-lhe a casa onde passou férias, com os seus 10 irmãos e irmãs, até à idade de 20 anos. Uma viagem no tempo que lhe permitirá realizar um balanço sobre a sua juventude. Contemplando o canteiro de morangos silvestres da sua infância Isak recorda a vida com os pais, os irmãos e irmãs e a prima Sara, por quem se apaixonou.
“É possível que eu tenha ficado sentimental. Talvez estivesse cansado e nostálgico. Foi então que percebi que pensava em coisas que estavam ligadas à minha infância. Não sei como isto aconteceu mas a luz do dia clareou mais ainda e as imagens das minhas recordações passaram perante os meus olhos com toda a força da realidade.”
Confrontado com a casa da sua infância e o canteiro de morangos silvestres Isak despe o manto de frieza com que se cobria e deixa-se dominar pelos sentimentos há muito reprimidos. Revê momentos fundamentais da sua vida sob uma nova luz (a luz do dia clareou) que o atingiu com toda a força da realidade. Isak tem uma epifania. Vê a prima Sara (Bibi Andersson) a apanhar morangos silvestres para o aniversário do tio Aron (Yngve Nordwall ) e o seu irmão Sigfrid (Per Sjöstrand) a beijá-la, apesar da resistência de Sara que jura fidelidade ao amor declarado a Isak, de quem estaria secretamente noiva. Mais tarde assiste à confidência que Sara faz à sua irmã Charlotta (Gunnel Lindblom), sobre o incidente:
“- Isak é tão gentil. Ele é fino, honesto e sensível. Quer sempre ler poesias, falar da vida após a morte e gosta de tocar piano. Só tenta beijar-me no escuro e fala do pecado. Ele é muito melhor do que eu. Nem sei como me sinto. Não há perdão para mim. Às vezes sinto-me muito mais velha do que ele. Ele parece um menino, apesar de termos a mesma idade. E Sigfrid é tão perverso e excitante! Quero ir para casa! Não quero passar o Verão a ser ridicularizada por todos.”
Isak finalmente percebe porque razão, estando ambos apaixonados, Sara acabaria por se casar com o seu irmão Sigfrid. Enquanto Isak era honesto, mas reprimido e respeitador dos costumes, Sigfrid era impulsivo, perverso e excitante. A sua frieza e incapacidade para viver a juventude com impetuosidade e paixão, deixando exteriorizar os seus sentimentos e instintos, tinham-lhe custado o amor de Sara, por quem estava verdadeiramente apaixonado. Ao ser confrontado com a dura verdade revelada confessa que “um sentimento de vazio e tristeza invadiu o meu coração”.
O Olho que se Vê a Si Mesmo
No diálogo de Platão denominado “Alcibíades I”, Sócrates fala de um olho que se quer ver a si mesmo. Para tal deveria olhar para algo que o reflectisse, do mesmo modo que uma alma, se quiser conhecer-se a si mesma, tem de olhar para outra alma semelhante a ela. Isak irá viver essa experiência com a entrada em cena de três novos personagens: Sara (uma jovem homónima da prima, também interpretada por Bibi Andersson), Anders (Folke Sundquist ) e Victor (Björn Bjelfvenstam). Os três jovens querem partir para Itália e Sara pede para seguirem viagem no carro de Isak até Lund. O triângulo da infância está refeito perante o olho de Isak que se vê reflectido nele. A jovem Sara, livre, ousada e namoradeira, viaja com os dois pretendentes: o sorumbático e religioso Anders e o extrovertido e livre-pensador Victor. Os dois irão formular e confrontar, ao longo da viagem, as suas teorias e propostas de vida opostas, perante os olhos curiosos de Sara e de Isak. Enquanto espera no carro com Isak que Victor e Anders terminem uma das suas intermináveis discussões, Sara pergunta-lhe:
“- De qual deles gosta mais? - De qual deles tu gostas mais? - Não sei. Anders será pastor e é muito carinhoso. Mas ser mulher de pastor? Victor também é bom e irá mais longe. - Em que sentido? - Um médico ganha mais dinheiro. Pastores estão fora de moda. Mas ele tem pernas e pescoço bonitos. Como pode acreditar em Deus?”
Ironicamente Isak é médico. Mas acredita em Deus e foi ele o pastor no triângulo formado com a prima Sara e o seu irmão Sigfrid. Prosseguindo viagem Isak adormece, enquanto chove e Marianne conduz. “Dormi mas fui atormentado por sonhos e imagens que me pareciam tangíveis e humilhantes. Havia algo muito forte nestas imagens que penetrou na minha mente com determinação.” No sonho, um Isak humilhado é confrontado pela prima Sara com a sua imagem reflectida num espelho. A humilhação decorre de Isak, mesmo velho e assustado, não aceitar a verdade e recusar ver a sua imagem reflectida no espelho. Isak julgou saber tudo, mas afinal não sabia nada. Perdeu o amor de Sara e ficou apenas com a dor e a humilhação de se ver preterido pelo irmão.
O Casal Alman
Durante a viagem sucede um acidente. Isak quase embate de frente com um Volkswagen que circula em contramão, conduzido por Berit Alman (Gunnel Broström). Logo após o despiste Sten Alman (Gunnar Sjöberg), marido de Berit, pede desculpas pelo sucedido. O casal discutia e Berit ia bater no marido quando perdeu o controlo do carro. Perante estranhos Sten procura primeiro manter as aparências e inventar desculpas para o comportamento da mulher, esta porém não consegue deixar de recriminá-lo pelo seu egoísmo, vaidade e superficialidade. O casal segue viagem no carro de Isak com Marianne ao volante. Sten, irónico, acusa Berit de falsidade e histeria. Afirma mesmo que olhá-la é como observar a morte. Berit responde-lhe com novas agressões. Incomodada Marianne pára o carro e convida-os a sair, desculpando-se com os jovens que assistem à cena no banco de trás. Isak, apesar de silencioso, mostra-se igualmente incomodado pelo episódio. Mais tarde o casal reaparecerá no sonho de Isak. Sten leva Isak para um anfiteatro onde conduz um exame, alegadamente às suas competências médicas, perante uma assistência formada por vários alunos, com Sara, Anders e Victor na primeira fila. Porém o médico revela-se incapaz de responder às perguntas. Sten informa Isak que o primeiro dever de um médico é pedir perdão e de que foi acusado de culpa pela sua falecida mulher Karin (Gertrud Fridh). Berit desata a rir histericamente após Isak ter diagnosticado a sua morte. Sten leva então Isak ao exterior onde o obriga a rever uma cena marcante da sua vida. Um episódio que Isak nunca conseguiu esquecer. A sua falecida mulher Karin e o amante (Åke Fridell ) cometem adultério. Isak assiste a tudo passivamente. Karin imagina a reacção de Isak:
“Contarei tudo a Isak e já sei o que dirá: “-Pobrezinha, tenho pena de ti.” - Como se fosse Deus. Então vou chorar e dizer: “Sentes mesmo pena de mim?” Ele dirá: “Sinto muita pena de ti”. Eu chorarei e pedirei perdão. Então dirá: “Não precisas de pedir perdão, não há o que ser perdoado”. Mas não é o que ele pensa. Ele é um homem frio. Então ficará carinhoso e eu gritarei que está louco e que a sua demonstração de afecto me dá nojo. Ele vai querer dar-me algo para dormir e dizer que compreende. Direi que é tudo culpa dele. Ele ficará triste e dirá que a culpa é minha. Mas não se importa com nada. É frio como gelo.”
O casal Alman é o espelho do casamento de Isak. Tal como Sara, também Karin acusa Isak de ser frio como gelo, de viver sem paixão e de esse seu comportamento ser responsável pelo fim do casamento. Berit parece morta, mas ri histericamente. Karin para não se sentir morta, comete adultério. Tal como Sara, Isak também perderá Karin. Primeiro para o amante, depois para a morte. No final da cena Isak pergunta a Sten qual será a pena. Sten responde: “A de sempre. A solidão.”
Mais Assustadora do Que a Própria Morte
Durante a viagem Isak vai visitar a mãe (Naima Wifstrand), nonagenária, acompanhado por Marianne. Esta começa por confundir Marianne com Karin, dizendo que não quer falar com a esposa de Isak: “Ela já nos causou muitas dores”. Desfeito o equívoco ainda assim não resiste a acusá-la: “Porque não está com Evald e os seus filhos?” Quando Marianne responde que não têm filhos persiste nas críticas: “Estes jovens de hoje são estranhos. Eu tive dez filhos.”A mãe de Isak mostra-lhes os brinquedos de criança dos seus filhos, enquanto se lamenta:
“- Dez filhos, todos mortos menos tu, Isak. - Vinte netos. Evald é o único que me visita. Não estou a reclamar. Tenho quinze bisnetos que nunca vi. Mando cartas e presentes para todos nos seus aniversários. Recebo cartas de agradecimento, mas ninguém me visita, a não ser quando querem dinheiro emprestado. Eu devo ser muito cansativa. - Não diga isso mãe. - Também tenho outro defeito. Não morro. Todos os descendentes estão à espera e não há modo da herança sair…”
Mais tarde Marianne recordará a cena a Isak, com manifesto incómodo:
“- Quando o vi com a sua mãe senti muito medo. - Não entendo. - Eu pensei: - Esta é a sua mãe, uma velha fria como gelo, de certa forma mais assustadora do que a própria morte; - Este é o seu filho, e entre eles há uma grande distância. Ele sente-se um morto-vivo. E Evald sente-se no limar do frio e da morte.”
Marianne observa as semelhanças entre as três gerações. A mãe, Isak e Evald, são frios e distantes, incapazes de manifestarem sentimentos e obcecados com a morte. Todos acabam por afastar quem quer que se aproxime de si. Todos parecem condenados à solidão, uma condição mais assustadora do que a própria morte.
A Esperança
A viagem mostra-se reveladora para Isak. Além de experimentar um penoso exercício de auto-conhecimento, descobre ainda que Marianne está grávida e que esse foi o motivo da separação de Evald, incapaz de aceitar a responsabilidade de trazer uma criança ao mundo. De certo modo compreende-se a posição de Evald quando contemplamos as vidas de Isak e da sua mãe. Pai e filho sentem-se mortos, apesar de vivos. Para Evald:
“É absurdo trazer uma criança para este mundo e mais absurdo é achar que ela viverá bem. Eu fui um filho indesejado de um casamento infernal. Será que sou filho do meu pai?” “Não existe certo e errado. Agimos conforme o necessário. Isto é primário. O necessário para ti é viver, existir e procriar. Para mim é morrer, simplesmente morrer.”
Evald é um niilista. Para ele, após a destruição moral tudo cai no vazio. A vida é desprovida de qualquer sentido, reina o absurdo e o niilista não pode ver outra alternativa senão esperar pela morte (ou provocá-la). A circunstância de ter crescido num casamento infeliz, contemplando a destruição progressiva da mãe e o vazio emocional do pai e da avó marcaram-no profundamente. Não quer transmitir esse legado a um filho. Mas Marianne não é assim. É emotiva e impulsiva e está determinada a ter o filho, apesar da oposição do marido. Refugia-se junto de Isak, esperando que Evald, pela sua ausência, reconsidere. Também ela reviu o seu casamento no casal Alman mas, como ama Evald, recusa-se a perder a esperança. A terminar como Berit ou Karin.
Recordações
A cerimónia é eloquente. Marianne, Evald e Agda, que não desistiu de Isak e viajou de avião para assistir à cerimónia, assistem orgulhosos na primeira fila à consagração de Isak. À noite Sara e os rapazes fazem uma serenata de despedida a Isak. Sara diz-lhe que o amará hoje, amanhã e sempre, o que deixa o médico visivelmente sensibilizado. Isak desculpa-se perante uma Agda surpreendida pela mudança. Evald e Marianne saem juntos para o baile, aparentemente reconciliados. Evald confessa ao pai que pediu à mulher para ficar consigo, que não pode viver sem ela e que ela fará como entender, quanto ao filho. Isak agradece a Marianne a companhia durante a viagem e confessa-lhe que gosta muito dela. Sentimento que Marianne retribui. Isak fica então entregue às suas recordações de infância. Talvez tentando descobrir, como Marion do filme Another Woman de Woody Allen (um dos dois filmes que Allen escreveu e realizou baseados em Morangos Silvestres – o outro é Deconstructing Harry) se uma recordação é algo que se tem ou algo que se perdeu. Finalmente em paz.
Realizador: Michael Haneke Com: Isabelle Huppert, Annie Girardot, Benoît Magimel, Susanne Lothar, Udo Samel, Anna Sigalevitch, Cornelia Köndgen, Thomas Weinhappel, Georg Friedrich, Philipp Heiss, William Mang
Tal como em “O Laço Branco”o austríaco Michael Haneke revela-se em “A Pianista” um cineasta com particular vocação para explorar as facetas mais negras da personalidade humana. Erika Kohut (Isabelle Huppert) é uma pianista e professora do Conservatório de Viena, artista brilhante e reconhecida (ainda que a atenção que receba fique provavelmente aquém das suas expectativas e sobretudo, das de sua mãe), exímia intérprete de Schubert, mas com uma vida pessoal bem mais problemática do que a sua carreira artística e académica levaria a supor. Apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, Erika vive com a mãe (Annie Girardot), uma mulher dominadora e possessiva, com quem mantém uma complexa relação de amor-ódio, com frequentes episódios de violência física e psicológica. A mãe reconhece e exalta as suas qualidades artísticas, mas de forma obstinada. Incute-lhe um espírito competitivo doentio que Erika descarrega nos alunos. Apesar do seu brilhantismo e inegável amor pela música, Erika é uma professora austera, exigente muito para além do razoável, fria e por vezes mesmo vingativa relativamente aos pupilos. Dir-se-ia que a mãe vive, através da filha, um reconhecimento social e artístico que não teve, exigindo-lhe nada menos do que a perfeição, e que a filha, obrigada a viver a vida por procuração da mãe, se ressente desse domínio consentido, manifestando de forma quase indiscriminada, o seu ódio para com a mãe e o mundo. O ódio e a frustração doentios de Erika manifestam-se de várias maneiras. Pela violência física e verbal no trato com a mãe e os alunos. Pelos hábitos sexuais bizarros. Pelo ciúme incontrolável e vingativo. Até pela auto-mutilação ocasional. Do pai sabemos que enlouqueceu e que está internado num hospício, recebendo Erika a notícia da sua morte, pela mãe, quase no final do filme. Fica a dúvida se a loucura de Erika é uma consequência da genética paterna ou se, opção bastante mais interessante do ponto de vista do drama psicológico apresentado no filme, a loucura de ambos resulta da mútua convivência com a personalidade terrível da mãe. Psicologicamente Erika vive num complexo de Édipo não resolvido. A sua personalidade permanece estranhamente ligada à da mãe, numa relação de amor e ódio que atinge contornos sexuais. Surge então Walter Klemmer (Benoît Magimel), jovem, bonito e exímio pianista. Interessa-se por Erika, apesar da diferença de idades, e começa a manifestá-lo de modo cada vez mais ostensivo. Esta intromissão de Walter no mundo pequeno e doentio de Erika começa por irritá-la, procurando afastá-lo de qualquer modo ao seu alcance. Mas como ele não desiste, Erika começa a dedicar-lhe um sentimento de posse, a única forma que conhece de manifestar o amor. Uma crise de ciúmes gera uma vingança terrível sobre uma aluna e serve igualmente como mensagem a Walter de que o seu sentimento é, de algum modo, correspondido. Mas a relação revela-se impossível. Walter está apaixonado por Erika, mas esta é incapaz de amar. O amor para si é um terrível jogo de domínio, de posse e de sexualidade frustrada, tal como o que vive em casa. O seu objectivo principal parece ser o de usar Walter como o carrasco das suas frustrações, punindo-a pelas suas acções, e através dela também a sua mãe. Na carta que lhe escreve, descrevendo minuciosamente todos os jogos sexuais que espera dele, diz “É esse o meu maior desejo. Pés e mãos atadas atrás das costas, e fechada à chave perto da minha mãe, não podendo ela alcançar-me por a porta estar fechada e assim ficar até de manhã. Não te preocupes com a minha mãe, esse problema é meu.” Erika quer ser punida (como já era notório pelos seus recorrentes ataques de auto-mutilação) mas quer que essa punição ocorra junto à mãe, para que também ela fique consciente da agressão e igualmente impotente. Para que, através do seu sofrimento, também a mãe seja punida. A sua sexualidade desenvolve-se num triângulo perverso no qual a mãe ocupa necessariamente um dos vértices. Walter transformará o seu amor em desprezo e acabará por realizar o desejo de Erika, embora impondo-lhe um coito que esta manifestamente não desejava. A reacção das duas mulheres na manhã seguinte é surpreendente. Como se nada se tivesse passado, aprumam-se e vestem-se a rigor para o concerto em que Erika irá acompanhar um aluno ao piano. Apenas Erika esconde uma faca na mala, com propósitos desconhecidos. A naturalidade com que a mãe reage à violação e às agressões físicas sofridas pela filha na noite anterior, quase à sua frente, denuncia que talvez também ela ache que a punição que ambas sofreram foi merecida. Que talvez a ligação profunda, doentia e sexual que a filha sente por si, seja correspondida. Que talvez aceite o papel de vértice no triângulo amoroso imposto pela filha. No átrio do teatro Erika espera por Walter com a faca escondida na mala. Antecipa-se o drama. Este chega alegre, efusivo e acompanhado pelas colegas da sua idade, não dedicando à professora mais do que um cumprimento, quase desrespeitoso. Erika despeitada espeta a faca no peito, regressando aos auto-castigos, e afasta-se do teatro para um fim incerto. Um drama psicológico poderoso e incómodo.
Realizador: Matteo Garrone Com: Tony Servillo, Gianfelice Imparato, Maria Nazionale, Salvatore Cantalupo, Gigio Morra, Salvatore Abruzzese, Marco Macor, Ciro Petrone, Carmine Paternoster, Gomorra é um filme brutal.
Mais do que a violência, a corrupção, as profundas ligações da máfia napolitana aos meandros do poder, o filme impressionou-me pela vida quotidiana naqueles bairros sociais dos subúrbios de Nápoles, autênticas favelas desenhadas a régua e esquadro, governadas por barões da droga e onde as esporádicas rusgas policiais, quais raids cirúrgicos e ultra sónicos, parecem causar efeito semelhante ao de um mosquito numa manada de elefantes. De imediato vem à lembrança a Cidade de Deus de Fernando Meirelles e o modo como a violência condiciona indelevelmente a vida de todos quantos nascem e crescem nestas Gomorras que permanecem imunes ao castigo de Deus. E dos homens. Impressiona como Totó (Salvatore Abruzzese), um jovem adolescente de 13 anos de idade, completa em poucas semanas a metamorfose de um inocente paquete da mercearia do bairro, que agradece orgulhosa e respeitosamente cada pequena gorjeta que recebe nas suas lides, para um operacional brutal e sem escrúpulos ao serviço de um gang de narcotraficantes, capaz de trair as pessoas que com ele conviveram desde que nasceu, apenas por fidelidade ao gang e ao seu desejo de integração (uma evidência dos mecanismos de integração social acrítica do indivíduo, tão bem criticados por Woody Allen em Zelig). Impressiona ainda como Marco e Ciro (Marco Macor e Ciro Petrone) dois adolescentes pouco mais velhos que Totó, atingiram já um estado tal de alienação que perderam o medo. Imitam a violência gratuita de Scarface no ecran e acreditam que vão tornar-se os mais temidos gangsters da região, apenas porque conseguiram dar um ou dois golpes bem sucedidos e tomar posse de um grande número de armas escondidas por um dos bandos mafiosos. Aqui não há lugar para heróis. Esta é uma sociedade em que apenas os cobardes chegam a velhos. Como Dom Ciro (Gianfelice Imparato) que sobrevive como correio dos traficantes, entregando dinheiro aos familiares dos membros do clã presos, em troca do seu silêncio. Cada dia é uma luta pela sobrevivência que Dom Ciro assegura traindo os mais fracos e juntando-se aos mais fortes. Ou como Pasquale (Salvatore Cantalupo) exímio costureiro cujas obras impressionam até estrelas de cinema como Scarlett Johansson, mas que se resigna a viver, incógnito e mal pago, sob o jugo da Camorra, sabendo que a sua vida depende disso. Mesmo os mais promissores filhos da terra, como Roberto (Carmine Paternoster) ou se ajustam ao sistema sem escrúpulos dominado pelo crime organizado ou “vão fazer pizzas”, nas irónicas palavras de despedida de Franco (Toni Servillo), o seu patrão e mentor no criminoso negócio dos lixos tóxicos. Desenganem-se pois aqueles que acreditam que as imagens impressionantes de Cidade de Deus são próprias das injustas sociedades em vias de desenvolvimento da América do Sul ou de outros cantos desfavorecidos do globo. Esta Gomorra floresce no seio dos parentes ricos da família europeia e nem sequer parece particularmente influenciada por fenómenos de migração que tanto assustam alguns e exaltam a xenofobia de outros. Na verdade as comunidades migrantes (no caso a africana e a chinesa) apenas surgem no filme como vítimas da mão brutal da máfia napolitana ou de jovens freelancers inebriados pela febre de poder transmitida pela violência gratuita e impune e pelos filmes de Hollywood. Baseado no livro do jornalista Roberto Saviano, Gomorra exalta o cinema interventivo, documental, jornalístico. Uma obra que visa denunciar, incomodar e desse modo agir como catalisador da mudança. Uma ficção demasiado próxima da realidade.
PS - Uma notícia no jornal Expresso de 6 de Janeiro de 2010 dá conta que três dos actores de Gomorra (Salvatore Fabbricino, Bernardino Terracciano e Giovanni Venosa) foram recentemente condenados a penas de prisão pelos crimes de extorsão e tráfico de droga. Uma notícia que abona o realismo da obra de Matteo Garrone e da frase com que finalizei a presente nota.
Rashomon abriu das portas do ocidente ao cinema japonês e a Akira Kurosawa. Recebeu o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1951 e libertou o realizador dos tempos difíceis que se avizinhavam, pois o filme tinha sido mal recebido no Japão e a produtora rescindido o contrato com ele. Mais tarde receberia também o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1952. No centenário do nascimento de Kurosawa que é também o 60º aniversário de Rashomon, vale a pena rever esta obra-prima do cinema que, apesar da idade, mantém todas as qualidades que despertaram o interesse do júri de Veneza em 1951. Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto adaptaram dois contos do escritor nipónico Ryūnosuke Akutagawa (Rashomon e Yabu no Naka) publicados em 1922, e tranformaram-nos num argumento que surpreendeu o mundo cinematográfico dos anos 50 e que ainda hoje constitui um desafio ao espectador. Paralelamente a cinematografia a preto e branco de Kazuo Miyagawa ficaria na história. Pelo modo fantástico como filma a floresta de Kyoto (ainda hoje a sequência do lenhador na floresta parece mágica, qual portal que nos transporta no tempo e no espaço até ao Japão medieval) fazendo um uso inovador e revolucionário da luz solar. Na porta de Rashomon (uma da portas medievais da cidade de Kyoto) três personagens abrigam-se da chuva e debatem um crime: um monge (Minoru Chiaki), um lenhador (Takashi Shimura) e um vulgar plebeu (Kichijirô Ueda). Um crime sobre o qual quatro testemunhas prestaram depoimento: o criminoso (Toshirô Mifune), as duas vítimas (um samurai e a sua mulher, Masayuki Mori e Machiko Kyô) e o próprio lenhador, testemunha ocular. Surpreendentemente todos apresentam versões substancialmente diferentes dos factos, a ponto de não se descobrir quem cometeu o crime. A lógica narrativa do cinema tradicional obrigaria a uma solução. A que a obra fornecesse as peças necessárias para que o espectador construísse o puzzle da descoberta da verdade. Não foi esse o caminho seguido por Akutagawa no seu conto, que Kurosawa conservou no filme, aí residindo o seu génio. De um vulgar thriller a obra transforma-se, por essa via, numa reflexão sobre a capacidade humana para captar e transmitir a verdade. Concluindo o filme pela negativa. Cada depoente distorce os factos adaptando-os aos seus interesses pessoais, particularmente à defesa da honra como bem supremo. Tal inviabiliza a descoberta da verdade. Pode assim concluir-se que a verdade humana absoluta não existe, é um mito. Mas a obra não termina em tom pessimista. Enunciadas as várias versões do crime, ouve-se o choro de um bebé abandonado. O plebeu encarna o egoísmo humano roubando ao bebé os seus mais valiosos pertences e deixando-o ao abandono. O lenhador indignado exige-lhe explicações, ao que o plebeu contrapõe expondo a mentira da história do lenhador. Foi ele quem roubou o valioso punhal com que foi cometido o crime. O monge, apesar de abalado nos seus princípios pela mentira e egoísmo que acabara de testemunhar, apressa-se a salvar a criança. É quando o lenhador, consumido pelo remorso, se disponibiliza a adoptar a criança dizendo: “Eu tenho já seis filhos. Um a mais não vai fazer grande diferença.” A fé do monge na humanidade é restabelecida e o homem, apesar de pérfido e mentiroso, é reabilitado aos olhos de Deus. Afinal também é capaz de actos de pura generosidade.
Realizador: Michale Haneke Com: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch, Ulrich Tukur, Ursina Lardi, Fion Mutert, Michael Kranz, Burghart Klaußner, Steffi Kühnert, Maria-Victoria Dragus, Leonard Proxauf, Levin Henning, Johanna Busse, Thibault Sérié
Das Weisse Band é um filme perturbador. Uma verdadeira autópsia realizada numa pequena aldeia rural alemã do princípio do século XX, que deixa a nu o mal profundo que mina aquela sociedade. Haneke apresenta uma comunidade doente, vivendo num quase feudalismo. Uma sociedade austera, autoritária, dominada pelo medo, pela extrema pobreza de uns a que se opõe a opulência e o poder discricionário de outros, pelo desejo de revolta de alguns contraposto ao conformismo suicida de outros e, acima de tudo, por uma profunda hipocrisia. Uma sociedade em que ninguém gosta de viver. Como refere Marie Louise (Ursina Lardi), a Baronesa, durante a sua discussão com o marido (Ulrich Tukur), “Quero ir-me embora para que as crianças não cresçam num ambiente dominado pela maldade, inveja, indiferença e brutalidade”. Não é inocente que a história termine precisamente no início da primeira grande guerra. Este é um retrato possível da época e não apenas da Alemanha. Na verdade, grande parte da Europa ardia com inadiável desejo de mudança, embora não sabendo muito bem para o que mudar. A uma sociedade decrépita, moralmente decadente e cujos valores apenas consegue manter pelo autoritarismo e a repressão contrapõe-se uma geração jovem, educada nestes valores e que sofreu na pele a sua hipocrisia, que apesar de minada por um aparente conformismo, explode esporadicamente em pura violência punitiva. Uma explosão que atinge indiscriminadamente, fazendo muitas vezes pagar o justo pelo pecador. Uma violência terrorista que atinge, na aldeia, crianças inocentes e adultos nada inocentes e em Sarajevo o Arquiduque Francisco Fernando e a mulher. O próprio Haneke afirmou numa entrevista: “eu quis retratar as origens do terrorismo, seja de natureza política ou religiosa”. É simbólica uma cena em que o jovem Martin (Leonard Proxauf), filho do pastor protestante (Burghart Klaußner), o mais austero dos pais da aldeia, arrisca deliberadamente a vida andando pelo corrimão de uma ponte de madeira. Quando o professor (Christian Friedel) corre em seu auxílio e lhe pede explicações, este responde-lhe “Eu dei a Deus uma oportunidade para me matar. Ele não o fez, é porque está satisfeito comigo.” Sabemos mais tarde que, Martin e outros colegas da escola (que andam em bandos sinistros que lembram Children of the Damned), foram os presumíveis responsáveis pelos crimes terríveis que assolaram a aldeia. Aos seus olhos as punições que infligiram foram justificadas e aprovadas por Deus. Tal como os bombistas suicidas. Este mau estar social esteve na origem dos dramáticos acontecimentos da primeira metade do século XX, embora seja simplista apontá-lo com única ou mesmo principal causa. Mas foi esta sociedade doente que buscou soluções no fascismo e no nazismo, mas também no bolchevismo, no anarco-sindicalismo, no socialismo revolucionário, no corporativismo e em vários outros ismos com que os líderes de então tentaram orientar o caudal de violência que brotava da sociedade. O mal não acabou com a conquista de Berlim e a bombas de Hiroxima e Nagasaki. Ele existe e está bem latente na sociedade contemporânea. Explode ocasionalmente, como os vulcões adormecidos que, inesperadamente, entram em incontrolável erupção, destruindo tudo e todos à sua volta. Seja nos EUA, no Médio Oriente, nos Balcãs, na Tchetchénia, na Geórgia, no Ruanda, na Somália ou em tantos outros locais esquecidos. Este mal que brota da sociedade não tem cura conhecida, tal como os crimes do filme, permanece insolúvel. Uma ideia pouco reconfortante que Haneke transmite através de uma obra extremamente bela e fria. A excelente cinematografia a preto e branco, da autoria de Christian Berger (na verdade Das Weiße Band foi filmado a cores e transformado num filme a preto e branco na sala de montagem, pela magia da digitalização), muito contribui para a paisagem gélida de emoções em que se movem as personagens. Um filme terrivelmente belo e pertinente.
Realizador: Jim Jarmusch Com: Johnny Depp, Gary Farmer, Crispin Glover, Lance Henriksen, Michael Wincott, Eugene Byrd, John Hurt, Robert Mitchum, Iggy Pop, Gabriel Byrne, Jared Harris, Mili Avital
“Dead Man” é um filme profundamente negro. Não apenas devido à belíssima cinematografia a preto e branco de Robby Müller, mas sobretudo pela forma como William Blake (Johnny Depp) vai lentamente descendo até às trevas, antes da libertadora viagem final, como que arrastando tudo e todos consigo. Uma estranha, mas ainda assim optimista, viagem de comboio de Cleveland para Machine, nos limites da civilização, leva Blake até uma promessa de emprego como contabilista. As personagens lúgubres que com ele partilham a carruagem, durante a viagem, de algum modo funcionam como um prenúncio das desgraças que se adivinham. Uma delas, o fogueiro do comboio (Crispin Glover) até o afirma desafiadoramente: “Isso não explica porque razão veio de tão longe para aqui, para o inferno!” e mais adiante “O mais certo é ir encontrar a sua própria sepultura”. Machine revela-se tão perturbadoramente lúgubre quanto a viagem de comboio o faria supor. Um misto de Deadwood com a opressiva idade das máquinas de “Modern Times”. A recusa do emprego prometido na kafkaquiana Metalúrgica Dickinson, dirigida pelo temível John Dickinson (Robert Mitchum) secundado pelo reptiliano John Scholfield (John Hurt), lança Blake nas impiedosas ruas do Oeste Selvagem, onde a simpatia de uma jovem, fabricante de flores de papel (outra referência chapliniana), Thel Russell (Mili Avital), parece ser o único porto de abrigo. A paixão é mútua mas de curta duração. Após uma fugaz noite de amor Charlie Dickinson (Gabriel Byrne), filho de John e ex-namorado de Thel, irrompe pelo quarto, surpreende o casal e dispara sobre Blake. Num acesso de paixão romântica Thel interpõe-se entre o amante e a bala, morrendo nos braços de Blake. Mas o seu sacrifício não chega para travar a bala que, trespassando o corpo de Thel, se aloja no peito do contabilista. Este riposta com a pistola que Thel escondia atrás da almofada, matando o jovem Dickinson e fugindo com o seu premiado cavalo malhado. William Blake sobrevive mas é um homem morto. Tem a cabeça a prémio e uma bala alojada junto ao coração. Foge para o mato onde é socorrido (quase diria adoptado) por um índio (Gary Farmer). Na verdade também ele é um proscrito. Ostracizado pela sua comunidade e condenado à solidão. É discriminado por índios e por brancos (até um missionário cristão (Alfred Molina), que lucrativamente se dedica ao comércio com os índios, se recusa a vender-lhe um simples pedaço de tabaco). Por isso gosta que lhe chamem “Ninguém”. “Ninguém” foi levado à força através do oceano até Inglaterra, onde aprendeu a ler e se apaixonou pelos poemas libertadores de William Blake, o poeta inglês já morto e homónimo do jovem contabilista. Esta coincidência e a empatia que gera, além da coincidente condição de proscritos que partilham, faz nascer uma estranha amizade entre os dois personagens. Um Blake que vacila, debilitado, mas que encarna o anti-autoritarismo do poeta inglês, e um “Ninguém” determinado a ajudá-lo a viver, como símbolo da revolta que sente contra o ostracismo de que foi vítima, apesar de Blake já estar duplamente morto (morto o poeta inglês, ressuscitado por “Ninguém”, e morto o contabilista pela bala de Dickinson que “Ninguém” não consegue extrair). O filme prossegue numa sucessão crescente de paradoxos, acentuados pelo dramatismo dos acordes da guitarra de Neil Young. O jovem contabilista, quase morto, torna-se o mais temido foragido da região, cuja lista de vítimas aumenta de dia para dia (entre reais e falsamente atribuídas). Apesar de morto, sobrevive a Thel e ao seu assassino, às suas muitas vítimas, aos pistoleiros contratados por Dickinson, aos xerifes e caçadores de prémios que vão no seu encalço, sobrevive até ao seu protector “Ninguém” que sacrifica a sua vida para defender o pouco que resta da de Blake, na sua última e simbólica viagem. Uma viagem libertadora rumo ao grande mar e à terra onde viveu o poeta William Blake. Uma vitória simbólica da liberdade contra a tirania.
Realizador: Jim Jarmusch Com: Forest Whitaker, John Tormey, Cliff Gorman, Dennis Liu, Frank Minucci, Richard Portnow, Tricia Vessey, Henry Silva, Gene Ruffini, Frank Adonis, Isaach de Bankolé, Victor Argo
Jim Jarmusch prossegue na sua apologia estética e ética da solidão. O herói solitário chama-se agora Ghost Dog (Forest Whitaker) e é um samurai moderno. Ele percorreu o caminho do guerreiro (Bushido) dos antigos samurais e com eles partilha o seu código de ética, a disciplina, a honra e a enorme habilidade com as armas (já não apenas a katana mas também as modernas armas de fogo, com silenciador). O facto de ser negro e de residir numas águas furtadas dos subúrbios de uma metrópole norte-americana, em nada altera a sua condição. Permite-lhe viver em contemplação, em comunhão com a natureza e em constante leitura de Hagakure, o Livro do Samurai, de Yamamoto Tsunetomo. Um passado violento nas ruas suburbanas da América pobre quase o levou à morte. Mas foi salvo por Louie (John Tormey) um mafioso com bom coração. Daí em diante Ghost Dog dedica-lhe uma devoção total. Ele é o seu senhor e a função do samurai é servi-lo, com total lealdade e empenho. Louie agradece, pois um assassino com a disciplina, habilidade e profissionalismo de Ghost Dog é coisa rara e extremamente valiosa. Pouco importam as diferenças culturais, éticas e filosóficas de ambos. O que conta para Louie é a extrema eficácia deste fantasma. Os seus crimes são minuciosamente preparados, com o rigor e profissionalismo só ao alcance de quem seguiu o Bushido. Na hora marcada o samurai furta um carro de luxo (Lexus, Mercedes, Jaguar, afinal ele é um nobre samurai) e desloca-se ao som de música iniciática (hip-hop, reggae, free jazz). Executa o crime na perfeição e comunica o sucesso da operação ao senhor, através de um pombo-correio. Não há lugar para hesitações nem reflexões. Apenas o sentimento de dever cumprido. Até que um dia as coisas se complicam e nada será como antes. Louie encomenda a Ghost Dog a morte de um mafioso, Handsome Frank (Richard Portnow), que ousou manter um romance com a filha do chefe Ray Vargo (Henry Silva). Ghost Dog cumpre escrupulosamente o contrato, mas Louise (Tricia Vessey), supostamente longe do local do crime, assiste a tudo. No sobressalto da morte do amante deixa cair o livro que estava a ler, Rashomon, que oferece ao assassino. Esta oferta selará o seu destino. Tal como o samurai do filme homónimo de Akira Kurosawa (baseado no conto de Ryūnosuke Akutagawa) a sorte de Ghost Dog acabará ditada por esta mulher, só aparentemente inocente. Ray Vargo, Sonny Valerio (Cliff Gorman) e o Old Consiglieri (Gene Ruffini), chefes supremos do clã mafioso, ordenam a morte de Ghost Dog. Louie bem alega que um homem daqueles é valioso, mas de nada vale. A sua sorte parece traçada. Mas Ghost Dog revela-se difícil de matar. Todos os assassinos enviados no seu encalço são mortos. Consegue até salvar Louie da morte, também ele um homem a abater pelo clã. Depois passa ao ataque. Um por um, consegue matar todos os chefes mafiosos, excepto Louie, o seu senhor. É então que se dá o volte face final, quando tudo parecia resolvido. Louie procura Ghost Dog para o abater. O código de honra do samurai exige-lhe que não ataque o seu senhor. A honra do samurai está acima da sua própria vida. Ghost Dog deixa-se matar, num figurado seppuku. Junto a Louie, no carro de Vargo, está agora a filha, Louise, por duas vezes salva por Ghost Dog, que assume as funções de chefe do clã, sucedendo ao pai. Foi ela quem ordenou a morte do samurai. Mas a sucessão de Ghost Dog também foi assegurada. A pequena Pearline (Camille Windbush) viu tudo, juntamente com Raymond (Isaach de Bankolé), o estranho amigo haitiano de Ghost Dog, vendedor de gelados e jogador de xadrez (nenhum compreende uma palavra do que o outro diz, mas entendem-se na perfeição). Também ela é uma solitária e leu Rashomon. Pouco antes de morrer, Ghost Dog ofereceu-lhe o Hagakure, o Livro do Samurai. Simbolicamente Pearline pega na arma descarregada de Ghost Dog e aponta-a ao seu assassino. O legado do samurai foi entregue.
Realizador: Charles Chaplin Com: Charles Chaplin, Paulette Goddard, Henry Bergman, Tiny Sandford, Chester Conklin, Hank Mann, Stanley Blystone, Al Ernest Garcia, Richard Alexander, Cecil Reynolds, Mira McKinney
Uma visão fortemente crítica dos Tempos Modernos por parte de Chaplin. Desde logo a ousadia de insistir num filme mudo em 1936 (seria o último que faria), quando já toda a gente usava o som e até começava a surgir a cor. Chaplin tinha consciência de quanto a poesia das suas personagens dependia da imagem e temia, não sem alguma razão, que o som a arrebatasse por completo. O resultado foi um híbrido, um filme mudo carregado de efeitos sonoros. De certa forma um protesto pessoal contra os tempos modernos que o obrigavam a “abandonar” a sua arte, ou melhor a sua forma pessoal de interpretar a arte cinematográfica. Chaplin retrata uma América pós-depressão, com um desemprego elevadíssimo, um conflito social permanente, a repressão policial, a miséria galopante, a industrialização crescente a qual, com a adopção generalizada da linha de produção, tratava os operários como máquinas, de forma desumana. Um retrato negro dos tempos modernos. E no entanto não abdica do seu poético optimismo, brilhantemente expresso no poema que haveria de escrever (há quem afirme ser da autoria de John Turner e Goeffrey Parsons) para a banda sonora do filme:
Smile, though your heart is aching, Smile, even though it's breaking. When there are clouds in the sky- You'll get by. If you smile through your fear and sorrow, Smile and maybe tomorrow You'll see the sun come shining through For you. Light up your face with gladness, Hide ev'ry trace of sadness. Although a tear may be ever so near, That's the time you must keep on trying, Smile, what's the use of crying? You'll find that life is still worthwhile, If you just smile.
Modern Times pode constituir um anacronismo, sob o ponto de vista técnico. Mas não deixa por isso de ser um dos filmes mais belos e humanos de sempre. Um filme em que Chaplin denuncia as injustiças do mundo moderno e se recusa a olhá-las com frieza. O seu remédio é a solidariedade, mesmo que isso lhe custe os mais elementares meios de subsistência. Afinal, basta sorrir e seguir o nosso caminho.
Realizador: Woody Allen Com: Woody Allen, Mia Farrow, Patrick Horgan, John Buckwalter, Marvin Chatinover, Stanley Swerdlow, Paul Nevens, Howard Erskine, George Hamlin, Ralph Bell, Richard Whiting
Zelig ficará para a história como um dos mais originais filmes de sempre. Não apenas pelo brilhantismo do trabalho técnico efectuado pela equipa liderada pelo cinematógrafo Gordon Willis mas também, e na minha perspectiva sobretudo, pelo modo genial como Allen transforma um falso documentário numa narrativa na qual reflecte, com a profundidade que lhe é habitual, questões essenciais da condição humana. Para mim há uma mensagem fundamental abordada nesta obra, que pode contudo ser analisada sobre diversos pontos de vista. Por um lado a reflexão filosófica existencialista sobre a falta de autenticidade do homem, numa crítica mordaz à necessidade humana individual de seguir passivamente a multidão, de fazer o que os outros fazem numa vã tentativa de integração. Por outro uma análise que poderíamos chamar sociológica, que privilegia os comportamentos irracionais das massas, que conduzem invariavelmente a consequências terríveis, como a história do século XX facilmente comprova. A primeira reflexão leva-nos a concluir que todos temos um pouco de Zelig. Por mais criticável que seja essa postura acrítica, faz parte da condição humana a necessidade de aceitação, de integração numa lógica de grupo. “No man is an island” na famosa meditação do poeta John Donne. Mas os perigos emergentes dessa necessidade humana são enormes. A manipulação das massas acríticas pode levar à tirania, à completa subversão dos mais elementares princípios éticos. No filme a postura das massas relativamente a Zelig vai evoluindo. A primeira reacção é de “voyeurismo”. Zelig (Woody Allen) é retirado pela irmã do hospital e exibido como um fenómeno de circo. Multidões acorrem de todo o mundo para ver o “homem-camaleão”. Zelig é uma aberração que ninguém quer perder. Um “freak” saído do filme de Todd Browning. Um ser à margem da sociedade. Segue-se o tratamento da psicóloga Eudora Fletcher (Mia Farrow). Zelig perde a faculdade de transformação e apaixona-se pela médica. O casal ganha então estatuto de celebridade. É convidado para as melhores festas, convive com socialites, abrem-se-lhes as portas de Hollywood. A simples integração na comunidade, pela ultrapassagem da diferença, gera a empatia generalizada. Zelig era uma aberração mas pelo seu esforço pessoal e da Dra. Eudora Fletcher passou a ser igual a todos os outros. É o reverso da necessidade humana da integração, a sociedade que premeia o abandono da individualidade e a dissolução no padrão generalizado. É ainda uma crítica à facilidade com que se criam ídolos através da manipulação da opinião pública. Mas o romance dura pouco. Os escândalos relativos aos comportamentos de Zelig anteriores à aparente cura sucedem-se. Praticou crimes socialmente terríveis, como bigamia, danos em bens domésticos, plágio e extracções dentárias desnecessárias. De celebridade passa rapidamente a inimigo público número um. O povo americano não lhe perdoa os comportamentos bizarros que teve, enquanto era o “homem-camaleão”. É curioso notar que tais comportamentos nunca foram notados ou denunciados quando Zelig ainda era uma aberração. Na verdade eles eram próprios dessa condição, pelo que ninguém se surpreenderia. É quando Zelig se assume como um cidadão normal, aclamado por todos, que tais comportamentos vêm a público. A exposição pública gera necessariamente um grau de exigência ética superior à do comum cidadão (e mais ainda à de um fenómeno de circo). Acossado pela justiça, pelos jornais, pela opinião pública, Zelig readquire os poderes de transformação e desaparece. E aqui surge uma das mais geniais ideias do filme. Zelig reaparece alguns meses depois na Alemanha nazi, entre os mais próximos seguidores de Adolf Hitler. A solução é de uma lógica assombrosa. Onde melhor se poderia esconder um homem sem vontade própria, capaz de se transformar no que quer que seja apenas para satisfazer a sua ânsia de integração? Quem melhor receberia um indivíduo com estas características? Claro está que a resposta a estas perguntas implica que todos os milhares de pessoas que assistem entusiasmados aos discursos de Hitler, com Zelig sentado ao seu lado, são também eles homens e mulheres “camaleão”, como o personagem de Allen. Numa cena hilariante Zelig encontra Eudora Fletcher no meio da multidão, num comício de Hitler, e começa a acenar romanticamente à sua psicóloga e amante. Lentamente, a atenção da multidão camaleónica que seguia o discurso do ditador, é captada pelo casal apaixonado, o que naturalmente provoca a ira do Fuhrer e a perseguição de Zelig como traidor. E eis que Allen gera um novo paradoxo na história. A fuga do casal da Alemanha é feita num avião que Zelig, por falta de conhecimentos, pilota de cabeça para baixo. O voo constitui um novo record mundial para a aeronáutica e Zelig é recebido em Nova Iorque como herói, com honras idênticas às de Charles Lindbergh. Acima das celebridades estão os heróis. E estes têm o privilégio de se elevarem além da simples moralidade. Possuem o seu próprio código ético. Genial.